segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

"Velho rabugento"

Homem, 81 anos. Casado há 63. Perdeu a esposa há 6 meses.

Antes dele, entra a filha. Que conta que ele está rabugento, difícil de conviver. Que a neta quer mandá-lo pra um asilo, mas que ela não aceitou porque prometeu à mãe que cuidaria do pai.

A filha tem hipertensão, e está descontrolada nos últimos meses por causa do aperreio dentro de casa. Não dorme bem. Quer que eu convença o pai a voltar à psicóloga, que começou a atendê-lo logo após a morte da esposa mas que de repente ele não quis mais ir.

Ok, manda o homem entrar.

- Eu vou sair, doutor, daí vocês ficam mais à vontade, ok?
- Ok. Bom dia, seu fulano, como o senhor está?
- Meio aperreado. Minha mulher morreu, sabe?
- Sei sim, sua filha me contou. Difícil, né?
- É sim. A saudade é muita, doutor.

E aí segue uma bela conversa, ele falando de como ela segurou a barra quando ele trabalhava como motorista de ônibus intermunicipal e viajava bastante. De como ela assumiu a criação dos filhos enquanto ele não conseguia ficar muito em casa. De como ela foi companheira quando ele envelheceu, e adoeceu. Da força dela quando ele adoeceu e teve que colocar um marcapasso. De como mesmo doente, no final da vida, ela era companheira dele.

- Ela deve ser muito especial mesmo, seu fulano.
- Se era, doutor. O senhor quer ver uma foto?
- Claro! Cadê?

Na foto, o rosto sério. Pra descontrair, pergunto se ela era braba ou tranquila. Ele disse que era tranquila, desde que não provocassem. A foto não era muito recente, a filha (que voltou ao consultório) explica. Mas segunda a filha, era muito séria. Rigorosa. Teve que ser, conclui, pois segurou a casa e os filhos com o marido viajando pelo mundo.

Ele não chora. Não chorou no enterro, nem no velório, nem depois. Disse que ficou chateado porque na missa de sétimo dia um conhecido comentou "ele não gostava dela, se gostasse estaria chorando". Isso o magoou. Comento que quem precisava saber se ele gostava ou não com certeza sabia. Ele balança a cabeça, concordando, e sorri. Mas não chora.

A filha comenta sobre a psicóloga. Ele olha de lado, e antes que ele fale algo eu entro:

- O psicólogo não é pra quem está doente. O psicólogo é pra quem está numa fase difícil da vida e pode ser ajudado se tiver um espaço pra conversar um pouco. Pra colocar pra fora o que não consegue falar para os filhos, para os amigos, vizinhos. O senhor notou que a psicóloga nem remédio passa? É por isso, porque o senhor não está doente. Só precisa de uma ajudinha nesse período.

Ele sorri. E concorda:

- É mesmo, doutor. Eu gostava de ir lá. A doutora tinha uma conversa bem boa.
- E por que o senhor não quis mais ir lá?
- Porque um dia ela faltou, e me mandaram pra consulta com outra pessoa. Eu já tava acostumado com a primeira. Aí quando foi na outra semana era a doutora de novo, e eu disse a ela que não tinha gostado dela não estar lá, e que eu não iria mais.

(olha a importância do vínculo do profissional com o paciente...)

- Mas seu fulano, pode ser que a intenção dela tenha sido a melhor possível. Ela teve que faltar por algum motivo, e pro senhor não perder a viagem colocaram o senhor pra consulta com outra psicóloga. Não tem problema se o senhor não gostou: diga isso a ela, diga que se ela faltar o senhor prefere perder a consulta e voltar na semana seguinte a ir pra outra pessoa. Pode ser?

Ele sorri.

- Pode, doutor. Pode sim. Eu gostava da doutora...aliás, o senhor é feito ela, tem uma conversa boa, ouve a gente. Eu nem sabia que tava chateado por causa disso, e o senhor descobriu. Eu vou voltar lá essa semana.
- Pois vá sim, diga pra ela tudo o que sente, e depois volta aqui pra me contar como foi.
- Volto sim. Pode deixar. Obrigado!

(o que eu estava fazendo longe desse trabalho, hein?)

5 comentários:

Mônica disse...

Ah vá... me fazer chorar...
Vc está no lugar certo, eu com certeza fui p o lugar errado :)

galamba disse...

Rodrigo, tu és médico sem precisar passar receita! Que pena que pouca gente escolhe essa profissão da forma como vc escolheu!

Fabi/SES disse...

Rodrigo médicos como vc existem poucos, vc é uma grande profissional. Parabéns

ingrid disse...

É isso ai Rodrigo, eu já sabia que você fazia a diferença, só não sabia que era tanta. Beijos e continue só sendo como você é.








Duda disse...

A sociedade só tem a agradecer a profissionais como vc. E finalmente saiu esse blog. Kkkk