quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Carta à filha

Filha,

Queria começar dizendo que você não tem que pedir desculpas por nada. Quem errou não foi você, foi aquele babaca que achou que seria mais homem expondo você num momento que só dizia respeito a vocês dois.

Quer dizer, você pode ter feito uma escolha errada, mas a gente escolhe pessoas erradas o tempo todo. Não se culpe por isso. Você não escolhe pior do que ninguém na sua idade. Só teve azar do cara ser mais babaca do que a média costuma ser.

Dito isso, queria dizer que você não devia ter vergonha de ter sido exposta fazendo sexo com seu ex-namorado. A maioria das pessoas na sua idade faz, acredite em mim. Quase todas as meninas que apontaram o dedo pra você, te chamando de vagabunda ou coisas do tipo, fazem exatamente a mesma coisa que aparece no vídeo. A diferença é que elas são hipócritas. De repente, até você poderia se comportar da mesma maneira, se fosse uma delas a vítima de um babaca. Julgar as pessoas faz parte de nossa natureza. Uma natureza cruel essa nossa, mas é real.

Quanto a mim e à sua mãe, não se preocupe com a gente. Pra mim não importa se vou descobrir que alguns babacas que eu achava que eram amigos resolveram apontar o dedo pra você, ou pra mim. No fim das contas a utilidade deste tipo de situação é exatamente derrubar a máscara destes idiotas, e colocar-nos num caminho diferente do deles daqui por diante. Sua mãe pensa igual, pode acreditar.

E acredite sim, a gente não se importa com o fato de você fazer sexo com seu namorado aos 17, porque quando tínhamos 17 nós fazíamos a mesma coisa, e lembramos como era ficar se escondendo pra fazer isso. Era angustiante, mas era gostoso, e a gente sabe que viver isso é importante pra você se descobrir, descobrir o que gosta e o que não gosta, e com quem gosta. Pra gente o que importa é que o sexo seja seguro e gostoso. Infelizmente, pra você, acabou não sendo.

Sabe o que mais entristece a gente agora? Sabe o que nos frustra mais? Saber que você não vai ler isso. Porque você se enforcou hoje pela manhã. E estava tão assustada com isso, e tão preocupada com a gente, que fez questão de noticiar isso nas redes sociais e naquela carta que estava em cima do seu travesseiro. E a gente não conseguiu te confortar porque nem deu tempo. Porque se eu tivesse visto a porcaria das fotos antes de ver você pendurada no banheiro, não teria deixado você a sós.

Tudo o que a gente queria era te colocar no colo agora e dizer que a gente ficaria junto e faria o que fosse necessário pra te devolver a alegria de volta. A gente mudaria de rua, de escola, de trabalho, de bairro, de cidade, de país. Porque nada é mais importante pra gente do que estar juntos. E perdemos isso.

Nessas horas seria muito reconfortante acreditar que você foi para um lugar melhor, coisa e tal. O fato é que infelizmente, eu sei que não foi. Porque não existe lugar melhor pra você do que na nossa casa, com a gente. E só ficaram as fotos.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

As pessoas e os protocolos

Domingo à noite, umas 20h. Entrada na urgência de um hospital privado superbonito, novinho. Acompanho minha mãe, com câncer em tratamento, chorando de dor. Deixo ela sentada e vou à recepção.

- Boa noite.
- (Recepcionista)Boa noite, senhor.
- Você pode me dar uma senha de atendimento?
- Claro!
(dá a senha)
- Opa. Ela tem 60 anos, é senha preferencial, né?
- É. Vou trocar.
(troca a senha)
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(painel chama a senha. Entramos na sala do enfermeiro da triagem/classificação de risco)
- Boa noite.
- (Enfermeiro) Boa noite. O que houve?
- Ela tá com muita dor.
- Onde dói?
- Ela tem câncer, tá com dores há alguns dias e o analgésico não tá dando conta.
- Ok. É diabética?
(enquanto isso, um técnico afere a pressão e mede a saturação de oxigênio)
- Não. É hipertensa. Mas tá controlada, toma os remédios.
(pressão deu 150 x 90)
- Tá alta a pressão.
- Então, como eu falei, ela tá com muita dor. Deve ser por isso que a pressão subiu.
- Ok. (pega uma pulseira verde e coloca no braço dela). É só aguardar lá fora, certo?
- Mas você classificou ela como verde? E a dor? Você nem aplicou régua de dor pra avaliar! Como classificar como verde? É isso mesmo?
- (Tom arrogante) É isso mesmo. Aguardem lá fora, por favor.
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(Dois minutos. Recepcionista chama para fazer o cadastro)
- Opa. Aqui, os documentos.
- Pois não. Olha, deixa eu te avisar que o atendimento está demorando porque só tem um clínico atendendo.
- Certo. Vê, ela tá com muita dor. O enfermeiro classificou como verde mas eu conheço o protocolo e sei que tá errado. Ela não vai aguentar esperar, tá chorando de dor ali. Ela tem câncer, tu sabe como são essas dores.
- Nossa. Ela não devia nem esperar aqui, o enfermeiro devia ter colocado ela lá dentro (na sala onde ficam os leitos de observação). Fulana, quem é o enfermeiro de hoje, é "fulano"?
(a colega da recepção confirma. Minha interlocutora faz um sinal de reprovação balançando a cabeça)
Faz assim, se demorar muito o senhor fala com ele novamente.
- Ok. Vou esperar um pouco.
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(Cinco minutos. Uma lágrima de dor. Vou à recepção novamente).
- Olha, eu vou entrar pra falar com o enfermeiro, tá? A bichinha tá mal, olha.
- Pode entrar, fale mesmo!
(a colega informa que ele não está na sala)
- E aí? Eu preciso que ele mude a classificação.
- Pode ir lá dentro, senhor.
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- (Vigilante) Pois não.
- Então, eu preciso falar com o enfermeiro mas ele não está na sala dele. A recepcionista autorizou minha entrada.
- Tudo bem. Ele tá naquela sala ali, pode bater lá.
(Bato na porta. Tento abrir. Trancada)
- Tá trancada a porta, véio.
- Oxe...ele deve ter ido jantar então.
- Tudo bem. Vê, eu entendo que ele tem o horário dele pra comer. Mas eu preciso falar com alguém que resolva meu problema (e conto o problema mais uma vez).
- Certo. Bora ali que tu fala com a enfermeira da observação.
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- Com licença, boa noite.
- (Enfermeira da observação). Boa noite.
- Olha, (e descrevo o problema da minha mãe e o que aconteceu no primeiro atendimento). Não dá pra esperar.
- Claro que não! Ela nem devia estar lá fora! Quem tá lá na frente, "sicrana"?
(Sicrana responde: É "fulano", e não parece muito empolgada ao mencioná-lo)
- (com ar de reprovação) Ok senhor, pode pedir ao maqueiro pra trazê-la pra cá, ok?
- Ok. Muito obrigado.
(daí pra frente: médica chegou rapidinho, atendeu, medicou, a dor passou, fomos pra casa)

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Isso foi ontem. "Fulano" retardou em pelo menos 20 minutos o atendimento a uma pessoa que estava chorando de dor, mesmo sendo avisado que seu procedimento estava errado.

Aconteceu num hospital privado. Novinho em folha. Chique no último. Nem tava tão cheia a urgência.

Aí eu te pergunto: qual o problema do sistema de saúde desse país? Quando foi que a gente começou a formar gente tão despreparada pra fazer uma coisa tão simples quanto aplicar um protocolo? Qualquer idiota consegue. Quer dizer, nem todos. Aquele idiota não.

Quando foi que alguns profissionais de saúde ficaram frios ao ponto de ignorar o sofrimento alheio em nome da preguiça?

Como dizia um amigo meu, "a sorte do SUS no Brasil é que o setor privado tem os mesmos problemas".