sábado, 29 de novembro de 2014

O câncer no Brasil

O Ministério da Saúde repercutiu estudo publicado no Lancet que destacou a "evolução do Brasil no combate aos cânceres mais comuns".

Boas notícias, não?

Não necessariamente.

Vamos aos dados ressaltados pelo Ministério da Saúde. O estudo pode ser acessado no site do The Lancet.

"Segundo o estudo, a taxa de sobrevivência para o câncer de mama no Brasil aumentou de 78%, em 2000, para 87%, em 2005, mesmo percentual registrado em países como os Estados Unidos. Para o câncer de próstata, o índice foi ainda maior, chegando a 96% de sobrevivência, mais que o dobro se comparado à chance de sobrevivência no mundo, que é de 40%."

Primeiro a gente tem que definir o que seria "sobrevivência". A pesquisa trabalhou com a taxa de sobrevivência em cinco anos, ou seja, o percentual de pessoas que estavam vivas cinco anos após receberem o diagnóstico de câncer. O problema com esse indicador é que ele pode estar sendo mascarado por um problema importante, mas pouco discutido: o sobrediagnóstico.

Recomendo a leitura do seguinte texto: The Case Against Early Cancer Detection, de Christie Aschwanden. Nele, a autora fala sobre as velocidades diferentes de evolução de tumores diferentes, como isso pode estar relacionado com o fato de que os programas de rastreamento dificilmente conseguem demonstrar redução da mortalidade pelas doenças que pretendem combater, e que isso pode ser explicado pelo sobrediagnóstico do câncer, ou seja, pelo diagnóstico e tratamento de cânceres que não trariam problemas às pessoas supostamente beneficiadas pelo rastreamento.

Agora pense: se estamos diagnosticando mais cânceres sem diferenciar quais deles matariam e quais não, como isso pode se refletir na sobrevivência em cinco anos após o diagnóstico? Temos duas possibilidades:
- Diagnosticamos cânceres que matariam: logo, podemos tratá-los rapidamente e assim a taxa de sobrevivência aumenta;
- Diagnosticamos cânceres que não matariam: assim, incluiríamos na lista de "doentes" pessoas sem problemas, e o aumento da taxa de sobrevivência estaria "contaminado" por sobreviventes de doenças que não matariam; ou seja, não sobreviveram a nada, apenas inflaram as estatísticas.

Veja que o aumento na taxa de sobrevivência em cinco anos acontecerá de qualquer maneira após um programa de rastreamento, seja por de fato descobrirmos e tratarmos precocemente doenças letais, seja por diagnosticar gente que não deveria estar nesta lista.

Vamos a outro dado apontado pelo Ministério da Saúde:

Para o rastreamento da doença, a mamografia é o exame mais eficiente. Entre 2010 e 2013, houve aumento de 51,1% nos exames realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em mulheres de 50 a 69 anos. A detecção precoce do tumor e início do tratamento aumentam as chances de cura.

Primeiro um detalhe: o estudo do Lancet foi de 1995 a 2009, então por que raios o MS fala em exames realizados entre 2010 e 2013? Vamos olhar para o que acontece com o rastreamento no período do estudo, mais especificamente o número de mamografias realizadas, o número de internações por câncer de mama e a taxa de mortalidade da doença. Não achei dados até 1997, mas podemos olhar os dados entre 1998 e 2009 (fonte: DATASUS):









Observem que embora o número de mamografias triplique no período, e as internações quase dupliquem (sinalizando que ocorrem mais diagnósticos de câncer dando entrada em hospitais, provavelmente para fazer cirurgias, radioterapias, quimioterapias, etc.), a taxa de mortalidade fica inalterada (mais precisamente cai um pouco no período inicial, depois começa a subir até superar um pouco a mortalidade inicial).

Ou seja, fazer mais mamografias não necessariamente significa que morrem menos mulheres por câncer de mama. E analisar o sucesso do rastreamento por mamografia a partir da taxa de sobrevivência não faz sentido porque como vimos anteriormente, esta taxa pode estar mascarada pelo sobrediagnóstico.

Outra pista pode estar na taxa de sobrevivência a outros cânceres. Obviamente que existem cânceres mais mortais do que outros. A maioria das leucemias hoje em dia é curável, o que não acontece com a maioria dos cânceres de pulmão. Mas quando a taxa de sobrevivência aumenta entre os cânceres que rastreamos, mas não sobe (ou até cai) entre os cânceres que não rastreamos, talvez seja um outro sinal de que a taxa de sobrevivência dos primeiros pode estar "contaminada" pelos "doentes que nunca foram (e provavelmente nunca seriam) doentes". O estudo menciona que:

- A sobrevivência para os cânceres de estômago, reto e leucemias caiu;
- A sobrevivência para os cânceres de próstata e mama subiu;
- A sobrevivência para os cânceres de colo uterino se manteve estável.

Vamos olhar rapidamente para a próstata. Segundo o MS, "O segundo câncer mais letal entre os homens brasileiros é o de próstata. As taxas se mantém estáveis: 12,4 a cada 100 mil, em 2002, para 13,65, em 2012. Para o diagnóstico deste tipo de câncer, os testes PSA realizados aumentaram em 67% entre 2008 e 2013. Em relação às biópsias de próstatas, foram realizados 44.924 procedimentos em 2013, o que representa 20% a mais do que em 2012". Nas palavras do próprio governo, portanto, aumentamos bastante a oferta de exames de PSA e biópsias e isso não teve qualquer impacto na taxa de mortalidade. Mais um belo argumento a favor da existência do grande problema: sobrediagnóstico.

O grande problema na mortalidade por câncer no Brasil hoje não é a falta de rastreamento. É o diagnóstico tardio (por demora do médico em perceber a possibilidade de doença, por demora dos exames complementares que confirmam o diagnóstico como tomografias e biópsias) e a dificuldade no acesso ao tratamento (encaminhamentos para especialistas costumam demorar, cirurgias demoram a ser agendadas, e a fila de espera para quimio e radioterapia é assustadora). Insistir nos rastreios e ficar se gabando por aumento na sobrevida em 5 anos é na melhor das hipóteses pura ignorância.

domingo, 26 de outubro de 2014

Um diálogo com o coração antes da votação

É a minha décima eleição. Pela primeira vez, não votei pela manhã. Votar sempre foi a primeira coisa a fazer num domingo de eleições, mas faz um tempão que estou aqui no computador procrastinando a ida à seção eleitoral. Motivo: absoluta falta de vontade de ir até a urna eletrônica.

Eleição pra mim sempre foi uma coisa massa. E sempre culminou com o dia da votação: acordar, tomar um banho, ir andando até o local de votação olhando para as pessoas, ouvindo as conversas, observando, ansioso para o(a) meu(a) candidato(a) sair vencedor. Em alguns momentos, até sair andando pela rua encontrando amigos, companheiros de batalha, trocando idéias.

Hoje eu vou porque é o jeito. Pensei em não ir e pagar a multa, mas não. Preciso viver o luto das eleições pra mim.

Até esse momento pensei em não anular o voto. De última hora, ouvir o coração (com o perdão da metáfora cafona) e escolher alguém.

Pois estou ouvindo o meu coração. E ele chora. E eu preciso respeitá-lo. Se a cabeça não fechou a questão ainda, vou deixar o coração escolher. E ele, mais do que qualquer coisa, não quer nenhum dos dois. Encolhido, envergonhado, ele me confidencia isso. Mas quando pergunto "E depois da eleição, o que faremos?", ele infla, levanta sua cabeça imaginária e diz: "o de sempre, velho. Continuamos na luta".

É isso. Bom voto pra vocês.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Um outubro rosa de verdade

- Bom dia, dona Maria.
- Bom dia, doutor. Olhe, eu vim aqui pra o senhor me dar um encaminhamento para a ginecologista.
- Ok. A senhora está sentindo alguma coisa?
- Não, estou ótima, é só pros exames de rotina.
- Certo. Deixa eu ver aqui...a senhora tem 70 anos, né?
- Isso, doutor.
- E a senhora faz esses exames de rotina sempre?
- Faço, desde que eu era jovem. Sempre me cuidei muito. Todo ano eu faço o preventivo e a mamografia.
- E já deu alguma alteração nesses exames?
- Não, doutor. Nunca. Também...eu faço por onde. Caminho todos os dias, como muita fruta, muita verdura, gosto de linhaça, de aveia...não como carne vermelha, viu?
- E a senhora tem algum outro problema de saúde, que não seja ginecológico?
- Não, doutor. Nada. Nem pressão alta, nem diabetes, nunca tive nada disso.
- Certo. E se eu disser que a senhora não precisa mais desses exames de rotina?
- Preciso não?
- Não. Se a senhora fez exames com a ginecologista regularmente esse tempo todo e não encontrou nada, pode ficar tranquila que provavelmente não vai ter problemas com essas doenças. O preventivo a gente para de fazer aos 64 anos. E os exames da mama, aos 69. Então a senhora não precisa mais.
- E por que os médicos dizem que a gente tem que fazer os exames mesmo asism?
- Provavelmente pra gerar consultas e exames e ajudar eles a pagar as contas do mês.
- É mesmo, né?
- Dona Maria, com a saúde que a senhora tem, posso lhe dar um conselho?
- Pode.
- Passe longe da gente. Venha só quando realmente necessário. Do jeito que médico gosta de procurar coisa, daqui a pouco arrumam algum problema pra senhora. Se a senhora precisar de algo, pode vir, mas relaxe com esse negócio de exames de rotina.
- (Ri.) Obrigado, doutor. Gostei da sinceridade. O senhor tá certo. Se eu precisar eu venho, mas se não...vou curtir a vida.
- Isso, dona Maria. Vá curtir a vida.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O "Outubro Rosa" está acabando...e não deixa saudades.

Outubro. Estudantes mal podem esperar pelo fim do ano letivo, trabalhadores anseiam por seus 13o. salários, gestores públicos correm pra fechar as contas, economistas se preocupam em exercícios de futurologia pra adivinhar o que vai acontecer com o PIB no ano que vem, e por aí vai, nem vou mencionar as eleições.

Como se a sociedade não tivesse preocupações e anseios suficientes, inventaram mais uma: o famigerado "Outubro Rosa" e sua sanha de colocar todas as mulheres naquela máquina que aperta as mamas.

Aqui em Recife, a paranóia segue seu curso anual. O prédio da prefeitura ganhou iluminação cor-de-rosa, assim como a antena da TV Globo. Homens e mulheres usam lacinhos da mesma cor pendurados nas camisas, ou mesmo na cabeça, e se forem da área da saúde penduram no jaleco. Jornais estampam o tema em suas capas, e amigos enchem nossas linhas do tempo do Facebook com lembretes da campanha.

É preciso ser dito que a idéia inicial do "Outubro Rosa" (surgida nos EUA, há quase 25 anos) é boa: mobilizar a sociedade em torno da prevenção e tratamento do câncer de mama, doença que mata milhares de mulheres todo ano, além de estar associada a cirurgias mutiladoras e tratamentos bastante sofridos. No entanto, como muitas das idéias que começam bem intencionadas, o "Outubro Rosa" foi completamente cooptado pela indústria; nesse caso, a indústria da mamografia.

Vale a pena olhar um pouco as evidências mais recentes sobre a mamografia enquanto método de rastreamento do câncer de mama:

Um estudo feito com quase 90 mil mulheres canadenses comparou a mortalidade por câncer de mama em mulheres que submeteram à mamografias anuais durante 5 anos com mulheres que não fizeram estes exames. Todas tiveram suas mamas examinadas por um profissional de saúde. Os pesquisadores concluíram que "a mamografia anual em mulheres com idade entre 40-59 anos não reduziu a mortalidade por câncer de mama mais do que o exame físico ou os cuidados habituais quando o tratamento para o câncer está disponível livremente". E mais: verificaram também que "22% dos cânceres identificados por mamografias eram sobrediagnosticados*, representando um caso para cada 424 mulheres que fizeram a mamografia no estudo".

(*nota: para saber mais sobre sobrediagnóstico, clique aqui)

Outro estudo, este feito com mulheres estadunidenses, concluiu após analisar várias evidências que "o rastreamento sistemático por mamografia pode evitar uma morte por câncer de mama para cada 1000 mulheres rastreadas, embora não exista evidência de que a mortalidade em geral seja afetada". Ou seja, a redução na mortalidade foi muito pequena, e as mortes por câncer de mama evitadas são substituídas por outras causas no mesmo período. Sobre os malefícios do rastreamento por mamografia, consideram que "para cada morte por câncer de mama evitada no período de 10 anos de rastreamento anual começando aos 50 anos de idade, de 490 a 670 mulheres podem ter mamografias falso-positivas, de 70 a 100 farão uma biópsia desnecessária, e de 3 a 14 terão um diagnóstico de câncer que jamais traria manifestações clínicas (sobrediagnóstico)".

Embora a mamografia não tenha resultados tão positivos, não é esta a percepção das mulheres. Um estudo europeu feito com 4000 mulheres apontou que 68% delas acreditam que a mamografia diminui o risco de desenvolver um câncer de mama e 62% acreditam que diminui em pelo menos metade o risco de morrer por este tipo de câncer, concluindo que "uma alta proporção de mulheres superestima os benefícios que podem ser esperados do rastreamento por mamografia", e que "este achado levanta dúvidas sobre o consentimento informado dentro dos programas de rastreamento de câncer de mama".

Membros do Conselho Médico da Suíça, ao analisar evidências como essas, afirmaram que "é fácil promover o rastreamento por mamografias quando a maioria das mulheres acreditam que ele previne ou reduz o risco de surgimento do câncer de mama e salva muitas vidas através da detecção precoce de tumores agressivos. (...) infelizmente, estas crenças não são válidas, e nós acreditamos que as mulheres precisam ser avisadas disso".

Se as campanhas que estimulam a realização massiva de mamografias não trazem todo o benefício que as mulheres acreditam que trariam, então não servem aos interesses destas mulheres. Então servem aos interesses de quem? Provavelmente, aos que lucram com isso. Diretamente (aos que vendem o exame) ou indiretamente (por exemplo, gestores públicos que melhoram a sua imagem ao promover as campanhas).

Pelo menos uma vantagem desse ano eleitoral: o bafafá em torno das eleições está tão grande que ofuscou os apertadores de mamas...

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ah, a sabedoria dos pacientes esclarecidos...

Durante uma das consultas de hoje, um senhor de 74 anos estava sendo atendido por mim pela primeira vez, contando que tinha a próstata aumentada e por isso estava tomando um medicamento:

- Doutor, o urologista queria me operar, mas eu não deixei não!
- E como foi isso?
- Ele falou que eu tinha a próstata grande e que ia me operar.
- Mas o que o senhor sentia?
- Eu tinha dificuldade para urinar...às vezes ficava presa, às vezes eu fazia na roupa porque não dava tempo.
- Mas o senhor não falou que tomava um remédio?
- Tomava sim! Ainda tomo!
- E ele queria operar por isso? O medicamento não ajudou o senhor?
- Ajudou sim. Depois de uns dois meses tomando eu não sentia mais nada.
- E por que ele queria operar o senhor?
- Então doutor, era isso que eu perguntava a ele! E ele só fazia dizer: "vai ser por vídeo, é rapidinho, o senhor fique tranquilo...". Só que eu sou macaco velho com esse negócio de operar sem necessidade, e quando ele não respondia o que eu perguntava eu saí logo dali.
- Como assim "macaco velho"?
- Ah, doutor, essa é outra história...eu operei o braço faz muitos anos, aquí, ó (mostrando uma cicatriz de uns 10 cm indo do meio do braço esquerdo até depois do cotovelo). Eu tinha uma dormência nesses três dedos da mão. Aí fui numa médica que fez um exame que botava uns fios no braço, e me mandou pra outro médico no hospital XXX. Lá ele me examinou na frente de um monte de meninos, tudo novinho, mais novinho que o senhor. Ele apertava meu braço e ficava dizendo (fazendo uma cara de esnobe): "Estão vendo? Hanseníase!"
- O senhor tinha hanseníase?
- Eu mesmo não, doutor! Mas enfim, ele falou lá, né? Professor, cheio de alunos ali, eu só pensava: "deve estar certo".
- Mas e a cirurgia?
- Eu tinha três dedos dormentes. Agora tenho dois, e essa cicatriz. Resolveu nada. Mas já acostumei.
- E ele mandou o senhor checar essa história de hanseníase?
- Nada! Eu é que fui, porque já tinha visto umas coisas no posto e sabia que era grave. Aí fui numa especialista em hanseníase que me disseram que tinha numa clínica da prefeitura. Ela ficou braba, viu? Disse que eu não tinha hanseníase coisa nenhuma, e fez até um bilhete bem desaforado pro médico. Eu tentei entregar a ele, mas ficou difícil marcar consulta.
- Ok. Então ficou por isso mesmo.
- É. Já tava operado mesmo, deixei quieto. Mas lembro o nome dele até hoje, viu? É XXXXXXXX.
- Nem me conte. Vamos cuidar do agora. Então o senhor escapou da cirurgia da próstata. Tá conseguindo sobreviver direitinho aos médicos, né?
- (Gargalhadas) É, doutor. É só não se afobar que a gente não se complica.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Um projeto distorcido

Publicado no Jornal do Commercio de hoje, 16/09/2014


Opinião JC - 16/9/2014
Um projeto distorcido
Rodrigo Lima

O prefeito do Recife, Geraldo Julio, iniciou neste ano a implantação de unidades de saúde chamadas Upinhas, a partir de promessa de campanha eleitoral com objetivo claro: pegar carona na boa receptividade que tiveram as Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) implantadas por Eduardo Campos, durante sua passagem pela administração do governo do Estado em pouco mais de sete anos, e mostrar à população recifense alinhamento de projetos com seu padrinho político.
As Upinhas aqui instaladas consistem em serviços de atendimento ambulatorial Unidades de Saúde da Família (USF) com estrutura diferenciada que os habilita a atender pequenas urgências, visando dar continuidade ao projeto estadual: se as UPAs se propunham a diminuir a demanda por atendimento de urgência nos grandes hospitais do estado, as Upinhas traziam a promessa de diminuir a demanda que se direcionou às UPAs.
Passados seis meses de inauguração da primeira Upinha, localizada no Morro da Conceição, será que a promessa está sendo cumprida?
Nas Upinhas acontece hoje a disputa mais importante para a saúde da população recifense nos próximos anos: Estratégia Saúde da Família ou Pronto- atendimento? Qual a melhor opção? Enquanto as três equipes de saúde da família, compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem e saúde bucal e agentes comunitários de saúde, se dedicam a oferecer atendimento personalizado, focado nas pessoas, considerando as necessidades da população, a gestão municipal trabalha para induzir estes profissionais a organizarem suas agendas priorizando queixas agudas e urgentes.
Ora, quais são as doenças que mais ameaçam de doença, incapacidade e morte a população brasileira? É sabido que as mais importantes são as condições crônicas como as doenças cardiovasculares e o câncer.
Quem estuda saúde pública sabe muito bem que o que superlota as urgências é exatamente a falta de cuidados preventivos e assistenciais em tempo hábil, antes que estas doenças se instalem e produzam complicações.
Precisamos evitar ao máximo a necessidade do pronto-atendimento, e isso não se faz com novos serviços com a mesma natureza, mas com serviços que equilibrem ações preventivas e curativas, cuidando das pessoas ao longo do tempo e de forma integral, o que acontece nas boas USF.
Em oposição a estas evidências, a gestão municipal insiste na nomenclatura Upinha para as USF do município, confundindo os usuários e descaracterizando o serviço mais bem avaliado entre todos os oferecidos pelo SUS.
Afinal, o que é "urgente" para a população recifense? Precisamos que nossos gestores municipais respondam rapidamente a esta pergunta, antes que as Upinhas distorçam ainda mais um sistema de saúde que poderia fazer muito mais pela saúde das pessoas se não fosse vítima de tantas invencionices desenvolvidas pelos gestores da vez.

Rodrigo Lima é médico e presidente da Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade (APEMFC) 

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Uma visita no fim do dia

18:05h.

A última paciente do dia acaba de se despedir e sair do consultório. Volto pro computador pra terminar de digitar o registro da consulta (é muito chato ficar digitando enquanto o paciente fica sentado na sua frente). Alguém bate à porta e abre uma fresta, coloca a cabeça e pergunta: "Posso entrar, doutor?".

É uma paciente conhecida. Acompanho a família há algum tempo, e sua mãe, que teve um AVC em casa há uns dois meses, está hospitalizada. Há alguns dias não tinha notícias dela. Ela tem uma cara serena. Eu conheço esse olhar.

"Tudo bem? Senta, fica à vontade!"

E o olhar profundo...mas ela se senta.

Só me resta olhar também. Olho no olho, um sorriso. Eu espero. Tome seu tempo, amiga.

"Doutor...tem mais uma estrelinha no céu". E sorri. Depois desfaz o sorriso apressada, como que para disfarçá-lo. Mas ele fica ali no canto da boca.

"Nossa...poxa, meus sentimentos. Como você tá? Quando foi?"

"Foi sexta, doutor. Mas foi bom...assim...o senhor entende, né? Ela descansou. No fim das contas eu tô...aliviada."

Entendo sim. Entendo até demais.

E seguimos por meia hora conversando sobre como lidar com essas perdas, com a família, como reorganizar a vida, como entender melhor o que passa na cabeça nesse momento. E ela foi pra casa. Sorrindo.

Pra falar a verdade, esse é o tipo do momento que eu mais me sinto médico de família. Não dá pra se orgulhar de ser procurado por alguém com uma amigdalite, mas quando alguém nesse momento da vida procura VOCÊ pra conversar, é sinal de que você anda trabalhando direito.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Como lidar com seu amigo médico

Com a abertura progressiva de vagas em cursos de medicina, cada vez mais pessoas possuem médicos em seu círculo de amizades mais próximas. Isso significa que, assim como a qualquer amigo, você pode pedir favores aos seus amigos médicos!

Pensando em manter a sua amizade com estes seres estranhos que vivem deixando de ir pro bar porque estão de plantão, se atrasam no almoço com a turma porque o último paciente demorou 40 minutos no consultório, e possuem uma atração incrível por outros da mesma turma, ao ponto de conseguirem conversas monotemáticas (sobre medicina) numa mesa de 10 amigos, deixo aqui alguns conselhos que podem evitar desgastes nesta amizade tão legal.

1) Não peça atestado falso.

"Como assim? A grande utilidade de um amigo médico é me dar um atestado pra queimar aquela segunda/sexta de trabalho pra poder curtir ressaca/ficar mais um dia na praia/terminar minha mudança/ir pra uma entrevista de emprego sem meu chefe saber/tirar minhas faltas na faculdade/etc...!!"

Pois é. Saiba que isso irrita profundamente seu amigo médico. Na primeira vez e se o motivo for bastante razoável, ele pode até quebrar teu galho, mas se você insistir nisso saiba que você desperta em seu amigo de jaleco branco sentimentos que você não imagina que podem existir em quem tem como missão cuidar da saúde das pessoas.

Imagine pedindo a um amigo que trabalha no Detran pra livrar aquela multa que você levou porque furou o sinal vermelho. Pronto. Pedir atestado falso ao seu amigo médico é a mesma coisa. Pra ele é igual a ser um funcionário corrupto do Detran. Isso deve ofendê-lo, não é? O que você acha de ofender um amigo?

E fora isso, saiba que você não engana ninguém. Seu chefe SABE quando seu atestado é furado. E pode ter certeza que quando tiver um corte de custos na sua empresa ou uma vaga para promoção ele vai saber direitinho como lembrar de você.

2) Não trate seu amigo médico como despachante.

"Hein? Quer dizer que eu não posso pedir ao meu amigo médico uma requisição pra fazer aquele monte de exames que eu vi na Ana Maria Braga que eu devia fazer todo ano?"

Não. Quer dizer, pode, mas se o seu amigo médico for um bom médico (e não um despachante), ele vai querer saber porque você quer fazer cada um desses exames, e vai querer opinar sobre quais você deve ou não fazer. Nós chamamos isso de "consulta médica", e nada impede que você faça uma consulta com seu amigo, mas é meio chato fazer isso na mesa do bar/ao lado da churrasqueira/na piscina do clube/etc. Só esteja preparado para estes questionamentos, e para considerar a opinião do seu amigo, que provavelmente só pedirá os exames que achar necessário.

Um ponto importante: nunca diga "amigão, eu queria fazer uns exames mas não queria marcar um médico porque tô sem tempo. Tu poderia pedir os exames pra mim?". Acho que não preciso explicar o porquê do "nunca". Espero que não.

3) Não peça receitas de remédios que você quer tomar sem uma necessidade clara.

"Mas e se eu tiver dor de garganta, não posso pedir uma receita de antibiótico a ele?"

Poder, pode. Mas esteja preparado para ouvir que pode não precisar do remédio, e ter seu pedido recusado. A não ser que seu amigo não seja médico, mas despachante. Lembre que você vive reclamando que "os médicos hoje em dia mal olham pra gente", então não exija de seu amigo a disposição de te prescrever nada sem uma consulta de fato.

"Ah, mas meu médico disse que eu deveria tomar!" Então que tal pedir a receita a ele?

4) Não peça receitas controladas para amigos/parentes/vizinhos/colegas do trabalho/qualquer coisa.

"Amigão, tu pode fazer uma receita de Rivotril pra minha tia? Ela tá precisando muito."

Seu amigo médico terá o maior prazer em ajudar você e sua tia. Mas este tipo de remédio precisa ser usado sob supervisão...médica. Então seria legal para a saúde de sua tia se ela tivesse um médico (que pode até ser seu amigo, olha que legal!) que acompanhasse ela e pudesse indicar direitinho se deve usar, quando, como, enfim...então peça uma vez, ou duas, se for realmente necessário. Mas não faça seu amigo se sentir um despachante/traficante. Simplesmente não peça.

5) Não envolva seu amigo em um caso e o deixe sem notícias depois.

Essa é mais delicada. Deixa eu tentar explicar: quando pedem nossa opinião sobre algum caso, nós nos envolvemos com ele, e gostamos de saber o que aconteceu depois. Isso nos ajuda a aprender coisas novas, exercita nosso raciocínio, e nos faz sentir uma sensação de ser útil, de ajudar.

Então se você pediu um conselho ao seu amigo médico sobre o seu primo que foi internado com pneumonia, e ele conseguiu opinar em algo, depois faça a gentileza de dizer o que aconteceu em seguida, mesmo que seu amigo tenha "errado", ou dito algo diferente. Ele vai gostar, te juro.

6) Pode ser muito difícil opinar sobre casos de pessoas que não vimos.

"Amigão, o cunhado de uma amiga do trabalho da minha namorada estava com uma dor no pé há 1 ano, que piorou semana passada quando surgiram bolinhas no ombro direito e secreção na orelha esquerda. O médico dele achou que ele devia fazer uma tomografia. O que tu acha?"

Nada. Não dá pra achar nada. Só dá pra opinar nesses casos quando se colhe a história direito, se examina a pessoa, enfim, quando se faz uma...avaliação médica. Então se seu amigo médico não quer opinar a respeito, entenda: ele está sendo ético e responsável, pois não tem elementos suficientes para dar uma opinião decente. Ele não está de má vontade com você.

E pra que serve meu amigo médico então?

Além das utilidades gerais de um amigo (fazer companhia, tomar uma cerveja, comer uma pizza, emprestar livros, jogar conversa fora, pegar um cinema, jogar bola, etc), seu amigo médico pode ser muito útil em coisas que ele adora fazer: conversar sobre saúde. Pode pedir conselhos, ele vai adorar dar vários deles, inclusive vários que ele mesmo não segue (fazer mais exercício, comer mais frutas e verduras, maneirar na bebida, não fumar, relaxar de vez em quando). E se você precisar de uma consulta de verdade, ele vai adorar cuidar de você ou indicar alguém que seja mais adequado, a depender do seu problema. Pode ligar pra ele, mandar e-mail, SMS, whatsapp, qualquer coisa. Seu amigo sempre estará solícito. Ele ficará superfeliz. Basta que você siga os conselhos acima.

sábado, 14 de junho de 2014

Uma pequena historinha sobre inclusão racial

Fui á unidade de saúde onde trabalho, agora pela manhã, para um pequeno procedimento em uma paciente. Ao terminar, ofereci uma carona a ela.
Subi o morro, parei na frente da casa dela e ela disse: "doutor, o senhor tá com pressa? Porque eu queria lhe mostrar à minha irmã...ela não acreditou que o senhor ia me atender hoje..." (Sábado de manhã).
Eu respondi que não estava apressado, e que esperaria no carro. Ela entrou em casa e rapidamente voltou com as duas irmãs. A que chegou primeiro olhou pra mim e convidou: "o senhor não quer entrar para tomar um pequeno?" ("Pequeno" é um cafezinho, aos leitores de outras paragens).
Eu falei que não, que tinha esperado só para conhecê-las, e que tinha que ir para casa pois iria sair com a família. Ela então perguntou:

"O senhor não quer entrar porque é casa de preto, é?"

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Vejam bem: ela não falou "casa de pobre". Ela falou "casa de PRETO".

Agora me digam que sociedade caminhará para menos desigualdade sem resolver este tipo de sentimento de inferioridade por causa da cor da pele. E me digam como fazê-lo sem políticas como as cotas raciais.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Estrelinha



Faz uma semana que ela se foi.

"Se foi", não. "Foi levada" seria mais apropriado.

O fato é que, estranhamente, as lembranças dela são mais vivas agora do que eram quando ela estava por perto.

(Há quem diga que ela está, mas infelizmente nem nessa hora eu me rendi ao conforto da crença no sobrenatural).

Olho para a estante, e vejo um livro de Rubem Alves que a emprestei, e acabei lhe dando um de presente.

Vou ouvir música, e toca uma do Chico Buarque que ela gostava (e que cantarolava, baixinho, deitada, há meros nove dias atrás).

Até canjica me apareceu esses dias...e eu lembro como ela adorava fazer a canjica dela...e como eu e outros nos revezamos mexendo o caldeirão da última, no ano passado.

Não que fisicamente ela estivesse muito presente nos últimos meses. O câncer havia engatado a quinta marcha desde o final do ano passado. E era a última marcha.

Finalmente cheguei a uma conclusão. Não é que eu me lembre dela o tempo todo: na verdade eu sou, em parte, ela. Assim chega o conforto, consequência óbvia diante de uma realidade imutável. Ela sempre estará aqui, não por nada, mas pelo simples fato de ter sido tão determinante no que eu me tornei.

Então além de saudade, fica a gratidão. E a vontade de deixar um pouquinho dela, de mim, de nós, nas minhas pequenas.

Pequenas que lembrarão pouco disso tudo, mas que já encontraram uma maneira de lidar com o fato: batizaram a estrelinha de brinquedo de "vovó Zete".

Então, vida que segue. Do jeito que ela sempre disse que tinha que ser.

Mas com a estrelinha por perto.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Recife, maio de 2014.

Cena 1:

(Interfone toca)

- Alô!
- Seu Rodrigo, tem um rapaz aqui querendo falar com o senhor. Disse que o nome dele é Eduardo, pintor que fez serviço pro senhor.
- Eduardo...certo, lembro dele. Faz tempo. Mas o que ele quer?
- Ele quer falar com o senhor. Posso passar pra ele?
- Pode, pode sim.
- Seu Rodrigo, é Eduardo, pintor, lembra de mim? Eu fiz um serviço pro senhor tem um tempinho...
- Lembro sim, Eduardo. O que houve?
- Eu queria dar uma palavrinha com o senhor.
- Ok. Sobe aí.

Cena 2:

(Parado na porta, esperando Eduardo subir, pensando)

- O que será que ele quer? Lembro que ele bebia pra caramba. Já sei, deve estar sem serviço. Se brincar perdeu os clientes por causa da cachaça. É lasca. Deve estar querendo trabalho. Foda. Logo hoje que eu tô em casa de manhã! Melhor que eu nem estivesse. Porra, será que é perigoso falar com ele assim, na porta de casa? Sei lá, mataram um médico ontem...não, não, o cara é gente boa. Sei lá. Eita, chegou o elevador.

Cena 3:

(Eduardo sai do elevador)

- Opa, Seu Rodrigo.
- Opa, Eduardo. Tudo bom?
- Tá não. Mataram meu filho.
- (silêncio) Vixe. Como foi isso?
- Dois bêbados dentro de um ônibus. Ele tava vindo de uma ôia...o senhor lembra que ele trabalhava comigo, né? Então...ele tava no ônibus, aí começou uma confusão no ônibus, foi o que disseram, e os bêbados encheram ele de porrada no ônibus e jogaram ele pela janela, o senhor acredita? Ali, na frente daquele hospital XXXX.
- Porra. E como você tá?
- Tô levando, né. Aperreio danado, prenderam os caras mas já soltaram. Daí eu tô dando uma volta atrás de serviço porque tive uma despesa danada com o enterro. Vim saber se o senhor tinha algum serviço pra mim.
- Rapaz...tenho não. Mas...
- Então o senhor pode me arrumar um dinheiro emprestado?
- Posso. De quanto tu tá precisando?
- Se o senhor me arrumasse uns 100 reais ia ser bom.
- Beleza. Só não tenho agora. Tu pode passar amanhã pra pegar?
- Posso sim. Aí eu deixo meu telefone com o senhor, e se aparecer algum serviço o senhor me avisa.
- Tá certo.

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Nem me pergunte se é verdade. Nem me pergunte se tá certo dar dinheiro assim. Nem me acuse de inocência. Aliás, não precisa falar nada.

terça-feira, 6 de maio de 2014

O toque

Cena:

Um casal no consultório. A mulher tem uma dor abdominal há algumas semanas e após contar sua história, deita-se na maca para ser examinada. Palpo o abdome, sinto, escuto. Sem pressa. O marido observa atentamente. Termino o exame e explico o que achei, dando recomendações e solicitando alguns exames. Ela agradece, se despede e sai da sala, dizendo que o marido precisa conversar sozinho.

Assim que ela sai, o marido me olha e diz: "Doutor, antes de contar meu problema eu queria lhe dizer uma coisa. O senhor sabia que só em tocar na barriga da gente e examinar assim, direitinho, o senhor já começa a cuidar da gente antes de saber o que a gente tem?"


=)


Sabia sim. Mas sempre é bom ouvir isso assim, deles, de forma tão espontânea.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Pode chamar de fofoca, eu chamo de consulta.

- Boa tarde, dona Clara. Tudo bem com a senhora?
- Tudo bem, doutor.
- E aí, o que houve?
- Eu marquei pro senhor porque minha pressão tá alta, e eu continuo com aquelas dores que eu falei da outra vez.
- Certo. Deixa eu dar uma olhada no seu prontuário...certo, as dores nos braços?
- Isso, doutor. Na verdade tem doído o corpo todo.
- É mesmo? Eu passei antiinflamatórios pra senhora da outra vez porque pelo que eu examinei parecia ser uma dor muscular por excesso de esforço, lembra? A senhora falou que trabalha como doméstica...os remédios aliviaram alguma coisa?
- Na verdade não, doutor.
- Ok. Vamos conversar mais sobre isso. Mas a senhora falou que a pressão anda alta, não foi? A senhora já tinha tido pressão alta?
- Sim doutor, eu sou hipertensa. Nem falei pro senhor naquele dia. Mas eu usava até um remédio, não lembro o nome, que eu não tomo desde fevereiro, porque acabou e eu não tava mesmo vendo muita melhora com ele, aí nem fui atrás de pegar mais.
- Tudo bem. Deixa eu ver essa pressão como está...16 por 11. Tá alta mesmo, dona Clara.
- Não disse? Eu não ando muito bem...
- E como estão as coisas? Assim, no geral? Em casa, no trabalho...tem tido muito trabalho?
- Ah, doutor, tá tudo certo. O trabalho nem tem muito esforço, hoje em dia eu cuido mais dos meninos do que da casa, porque ela colocou uma pessoa lá pra lavar roupa e passar, pra não forçar meu braço.
- Eita. Sua patroa deve gostar muito de você então. Faz tempo que você está lá?
- Faz sim, tem uns 10 anos já. Ela gosta de mim, porque eu é quem cuido dos meninos dela. Se não fosse eu...
- Como assim?
- Tem dois meninos lá, doutor. Marcelo, que tem 14 anos, e Miguel, que tem 10. O mais novo é tranquilo, mas o mais velho...
- Dá muito aperreio?
- Dá sim. Ele é complicado. Só obedece a mim.
- Como assim? E os pais?
- Oxe doutor, os pais...o pai dele viaja muito, passa a semana inteira fora e só volta no fim de semana. O menino fica solto. A mãe é muito mole. Ela nem gosta quando o pai fala alto com os meninos. E ela...pro senhor ter uma idéia, quem bota os meninos de castigo sou eu.
- Mas o que esse menino faz tanto?
- Ele é virado, doutor. Quer tudo do jeito dele, na hora que quer. Dia desses mesmo, encheram a casa de chocolate por causa da páscoa. Aí o menino queria se entupir de chocolate o tempo todo. Só que quando eu estou lá ele respeita, sabe? Me pede. Aí eu disse que não podia. Ele disse que ia ligar pra mãe, e eu disse que ele podia ligar pro Papa que não ia comer chocolate. Ele ligou, a mãe disse que podia, mas quando ele disse que eu tinha proibido, ela disse: "então não pode".
- Ela confia muito na senhora, então...
- Tem que confiar. Porque ele só obedece a mim. Quando ela pediu pra eu cuidar dos meninos eu disse: "eu cuido, mas a minha ordem é a minha ordem". E ela topou. Tá vendo que eu ia aguentar aquele menino sem poder mandar nele?
- Pelo jeito ela não passa muito tempo com eles, né?
- Passa não, doutor. Ela trabalha muito, e sai muito também. Mas quando ela tá em casa também...os meninos ficam no computador o tempo todo.
- É mesmo?
- É. O senhor acredita que ele gastou 500 reais no cartão da avó comprando coisas no computador? Gastando dinheiro nesses negócios de jogo...e dia desses ele gastou foi no cartão da mãe, mais de mil reais.
- Oxe...e essa mãe não bota esse menino de castigo não?
- Colocar coloca...deixa ele sem computador e sem iPod. Mas quando chega na sexta ela libera. Porque ela quer sair, né? Aí tem que deixar ele ocupado.
- E ele joga muito então, né?
- Demais. Quando eu estou lá, não, porque comigo ele dorme na hora. Dia desses a mãe tinha saído e eu estava lá, aí disse: "vamos, Marcelo. Dez da noite, hora de dormir". Aí ele disse que a mãe, antes de sair, disse que ele podia ficar até as onze. E eu disse: " quando ela estiver aqui você se resolve com ela. Comigo aqui vai dormir às dez". Ele fica arretado, mas obedece. Agora sabe o que ele fez um dia desses?
- O que?
- Ele tava botando era o despertador pra acordar de madrugada e jogar. Aí ficava lá, caladinho, porque tava todo mundo dormindo e ninguém via. Até que eu desconfiei e perguntei ao mais novo.
- E a senhora desconfiou por que?
- Porque ele estava dando trabalho pra acordar de manhã, e eu via que ele estava com sono mesmo. Aí eu perguntei a Miguel e ele disse.
- A senhora tá ligada, né?
- Oxe. 10 anos lá, doutor, conheço tudo. Dia desses mesmo teve uma lá que a mãe não me contou na hora mas eu sabia que tinha algo errado, apertei, e ela acabou me contando.
- O que houve?
- Ele começou com um negócio de chamar os amigos pra dormir lá. E toda vez era na noite que eu ficava dormindo lá. Só que os amigos, o senhor imagina, tudo igual a ele, um monte de reizinho. Começaram a pular em sofá, a fazer a maior bagunça, e na confusão derrubaram o computador dele...computador feito esse aí do senhor não, um daqueles pequenos, que fecha assim.
- Notebook.
- Isso, notebook. Só que caiu no chão e tinha era quebrado, mas ele não falou nada. Eu tava achando estranho porque nos dias seguintes não via ele jogar. Até perguntei, e ele falou que não queria. Como assim não queria, o menino é viciado naquele negócio. Então eu fui atrás da mãe, e depois que os meninos dormiram ela acabou me contando que o computador tinha quebrado.
- E por que só quando os meninos dormiram?
- Pra não falar na frente dele, né. Parece que ela tem medo dele. Então, ela me contou que tinha quebrado. Só que eu não deixei barato. Na hora eu fiquei calada, mas depois...
- Como assim?
- No outro dia eu peguei ele, botei na frente da mãe e disse: "conte pra sua mãe como você quebrou o computador, antes que eu mesma conte". E ele contou que o amigo tinha derrubado o computador quando pulou no sofá. Ela ficou revoltada, e disse que não ia consertar.
- Eita, olha aí, dessa vez ela reagiu!
- Que nada. Ele acabou pegando o de Miguel, porque lá cada um tem um. E acabou quebrando o de Miguel. Aí quando o de Miguel quebrou eles colocaram os dois pra consertar, e acabaram usando as peças do de Miguel no dele, e compraram um novo pra Miguel.
- É...deve ser difícil pra senhora cuidar desses meninos.
- E agora tem uma menina também!
- Como assim?
- Seguinte: eles estavam separados. Aí voltaram há pouco, mas ele tinha tido uma menina com uma moça aí. E a cada 15 dias ele leva a menina lá pra casa.
- E qual a idade dela?
- Dois anos. Bonitinha ela.
- E a senhora cuida?
- Nada, o pai fica com ela. Ele pega ela de manhã e devolve à noite. A patroa é que não gosta. Assim, ela finge que gosta, fica tentando brincar com a menina. Mas a menina não gosta dela. Criança parece que sente as coisas, né?
- É mesmo. E a mãe dessa menina?
- Fica pra lá, na casa dela. Nunca nem vi. Morro de pena, porque a menina tem tanta roupinha linda lá em casa e não pode levar, porque o pai não deixa. Vai acabar perdendo tudo.
- Oxe...ela não pode levar as roupas?
- Pode nada. O pai não deixa. Dia desses eu fui perguntar e ele disse que a mãe da menina não queria que fosse nada de lá pra casa dela. Mas eu sei que é ele que não deixa.
- E a senhora no meio dessa confusão toda?
- Num é? Complicado, né, doutor?
- É sim. Eu tava pensando aqui...será que essa dor da senhora e essa pressão alta não tem relação com isso tudo?
- Doutor, deve ter, né? Mas eu gosto de lá. Dá muito aperreio, mas eu gosto de lá.
- Então vamos fazer o seguinte, a senhora podia vir aqui mais umas vezes, pra gente conversar mais e aproveitar pra gente ver se controla essa pressão. Vou começar o tratamento de novo com os remédios, e a gente vai se falando e resolvendo os próximos passos. Pode ser? Vou pedir uns exames também porque quem tem pressão alta de vez em quando tem que checar se os rins estão bem, se a glicose no sangue tá boa...
- Tá ótimo, doutor. Gostei do senhor. Vou voltar mesmo, viu?



(obviamente, nomes e outras informações que pudessem identificar as pessoas envolvidas nesta postagem foram trocados, porque Recife é um ovo de codorna e vai que a coisa circula muito, né?)

terça-feira, 22 de abril de 2014

Aviso aos navegantes

Só um aviso pra quem chegou por aqui (a)traído pela última postagem, que descia a lenha no Lula.

Este que aqui escreve gostaria de fazer algumas declarações pra que não pairem dúvidas sobre a orientação política-ideológica deste espaço:

- Votei no Lula sempre que ele foi candidato (embora não tenha planos a curto prazo de repetir a experiência)
- Votei na Dilma porque entre ela e o Serra eu sou mais ela sempre
- Acho que Lula foi um presidente extraordinário, e que Dilma foi muito fraca
- Acho que todo o núcleo duro do PT sabia do mensalão
- Não vejo o PT como o partido mais corrupto do país, apenas como o primeiro a ser pego de forma tão escancarada
- Defendo o Bolsa Família, o Prouni, cotas raciais e outras iniciativas odiadas por muita gente que faz oposição ao atual governo
- Odeio o Joaquim Barbosa e o Lewandowski (o magistrado; do centroavante eu gosto)
- Defendo a liberdade de escolha da mulher em relação ao aborto, e a oferta de medicamentos/procedimentos pelo SUS às que fazem esta opção
- Sou contra a pena de morte em qualquer circunstância. Também sou contra a redução da maioridade penal (mas topo discutir algumas possibilidades)
- Defendo a descriminalização da maconha
- Sou contra voto obrigatório e financiamento privado de campanhas políticas
- Defendo voto distrital e uma ampla reforma no sistema político
- Não tenho tesão nenhum por Cuba nem pelos EUA. Mas já visitei este último, e adorei. E não pretendo visitar Cuba
- Sou contra a Copa do Mundo no Brasil
- Acho que a Petrobrás tem problemas, mas que nunca foi tão forte quanto no governo do PT
- Acredito que para chegar a qualquer cargo eletivo o cidadão tem que ser no mínimo conivente com crimes

Então, já fomos apresentados. Seja bem-vindo, venha de onde vier. Se tiver mais alguma pergunta, pode fazer nos comentários.


segunda-feira, 21 de abril de 2014

Lula e o SUS

Você pode amá-lo ou odiá-lo, e é dificil achar quem esteja no meio termo. Lula é, sem sombra de dúvidas, a maior figura política da história recente deste país, e como presidente sua dimensão histórica está no nível de Juscelino Kubitschek ou de Getúlio Vargas. Sua aprovação popular é tão grande que elegeu sua sucessora sem maiores dificuldades mesmo com a inexperiência política dela, e seu nome ainda é aclamado pelos que desejam uma eleição presidencial mais fácil para o PT (pois ao que parece, Dilma não enfrentará calmaria nos próximos meses).

Por sua influência sobre o partido do governo e sobre a própria presidente da república, e por ter seu nome insistentemente envolvido na eleição deste ano, acho que os posicionamentos dele sobre temas vitais para a sociedade brasileira merecem uma análise bastante cuidadosa.

Lula chamou blogueiros que apoiam o governo e o seu partido para uma conversa, uma entrevista coletiva. Ela pode ser vista na íntegra no YouTube, mas recomendo que quem se interesse veja por partes para pegar direitinho a opinião sobre cada tema.

Ainda não assisti tudo, me detive à parte em que ele fala da saúde. E fiquei assombrado.

Recomendo que você assista a essa parte AQUI antes de seguir com a leitura, para poder se situar em relação ao que vou comentar. E claro, formar sua opinião antes de ler a minha.

Assistiu? Ótimo. Então vamos lá.

Ele começa dizendo que conhece "os três níveis de tratamento que tem o ser humano neste país", que seriam o SUS (que na época em que ele menciona ter usado era INAMPS, e era MUITO diferente), os planos de saúde mais baratos e o privado representado pelo Sírio-Libanês. Depois emenda dizendo que os planos de saúde não vão resolver o problema deste país. Até agora tudo ótimo.

Emenda que sempre insistiu com seus ministros da Saúde que "não é possível levar saúde de qualidade às pessoas se não tiver dinheiro", numa referência ao subfinanciamento do SUS. Melhorou, não foi?

Aí vem a primeira pedrada: "Para dar acesso à alta complexidade e aos especialistas, precisa de dinheiro". Opaaaaa!!!! Ao falar de saúde de qualidade a menção que se faz é à "alta complexidade e aos especialistas". Claro que precisamos dele sim, talvez o Lula tenha esquecido que, alinhado com os sistemas de saúde de maior qualidade no mundo, o SUS foi planejado em torno da Atenção Primária e de bons médicos generalistas (aqui no Brasil chamados de Médicos de Família e Comunidade). Vai ver que ele corrige isso mais na frente na entrevista.

Daí ele emenda críticas ao fim da CPMF, no que eu concordo plenamente com ele. Mas olha o que ele diz: "ao acabar com a CPMF, eles tiraram, só naquele ano, o equivalente a 50 bilhões da saúde". Beleza.

No meio da fala ele menciona o subsídio aos planos de saúde privados, através de dedução no IR, e o classifica como "um privilégio que nós temos e que o pobre não tem". Aí quando eu penso que ele vai colocar isso como um problema que deve ser resolvido, vem outra pedrada: "quando eu vou no Sírio Libanês (sempre ele, nota minha) fazer check-up, eu chego lá, os melhores médicos e as melhores máquinas!"

(este que vos escreve vai ali ter uma convulsão de desgosto e volta em instantes)

(continuando)

Olhem a descrição extremamente real que ele dá: "pra fazer um check-up hoje ninguém pergunta mais o que você tem, se tá com dor de barriga, tá indo ao banheiro, tá urinando bem, ninguém pergunta mais isso! Chega lá, o cara fala 'máquina 1: Pá', 'máquina 2: pá', máquina 3: pá'. Você passa numa série de máquinas, tira exame de sangue, e o cara te dá o resultado: você tá bom ou tá mal". Quando eu achei que, num surto de lucidez, ele ia CRITICAR este modelo, ele emenda: "o povo não tem acesso a isso, e se a gente não tiver dinheiro, a gente nunca vai fazer com que ele tenha."

(só mais uma convulsãozinha, ok?)

Quer dizer que o dinheiro a mais que ele defende para o SUS é pra ISSO???? Pra dar acesso a ISSO???? Lula, sinceramente, NÃO, OBRIGADO. Esta porcaria de modelo de check-up que você acha a coisa mais linda na verdade é um grande embuste. Sei que você viajou bastante durante seu mandato, e talvez tenha aproveitado pra ver muita coisa, mas seguramente você não aprendeu nada sobre sistemas de saúde por aí.

Seguindo: "as pessoas falam: 'ah, mas é falta de gestão'. Possivelmente tem um pouco de gestão, mas (o problema) é dinheiro de verdade". Não, companheiro. O problema de gestão é IMENSO. E reside na falta de qualificação generalizada dos gestores do SUS, agravada pela municipalização da gestão. Vocês sabiam que pelo menos metade dos secretários municipais de saúde não tem nem curso superior na área, ou pelo menos em administração? Que eu já vi até motorista de ambulância indicado como secretário de saúde por conveniência político-partidária? Não adianta aumentar o financiamento sem melhorar a gestão, senão vai ter mais dinheiro na mão de gestores ruins, ou seja, o dinheiro vai para o lixo (e uma parte para os bolsos de alguns).

Daí ele começa a falar do "Mais Médicos", dizendo que o programa provou que faltavam médicos no interior, que tem excesso de médicos na Avenida Paulista, essas coisas. Verdade. E emenda: "o Mais Médicos não resolve o problema, vai agravar o problema". Olha que bom. Mas como de costume, outra pérola: "Porque na hora em que a pessoa tiver acesso ao primeiro médico, vai precisar do primeiro especialista".

Uma demonstração de ignorância absoluta sobre o modo de funcionamento de um sistema como o SUS. Se o sistema é baseado na APS, então companheiro, 80 a 90% dos problemas serão resolvidos ali, no primeiro ponto de contato do usuário com o sistema. Serão resolvidos pelos médicos de família e comunidade e pelos demais membros das Equipes de Saúde da Família.

Não que a falta de especialistas não seja um problema. Mas quando o guru do partido que governa o país, ele próprio tendo sido presidente por 8 anos centraliza a solução da saúde em "mais dinheiro para dar acesso a mais especialistas" (ele ainda emenda algumas questões como credenciar a rede especializada do país para atender pelo SUS e em aumentar os honorários médicos), vocês não acham que tem algo errado?

Ele ainda chega a dizer que "praticamente não existe mais clínico geral, todo mundo é especialista em algo, EU NEM SEI SE É BOM OU É RUIM. DEVE SER BOM. O povo deve ter acesso a isso". Ter acesso a isso é ruim, companheiro. Ter a maioria dos médicos como especialista é ruim, companheiro. E saber disso é o mínimo que se espera de alguém que estuda o que acontece no mundo pra poder entender o próprio país.

A ignorância de um ícone como Lula em relação ao que deveria ser o SUS, a quais foram as disputas que deram a ele o formato que tem, o desconhecimento da figura do Médico de Família e Comunidade, o esquecimento da Estratégia Saúde da Família (nem sequer mencionados em mais de 10 minutos de fala sobre a saúde no Brasil. O homem só falou em hospital) mostram que o futuro do SUS, ao contrário do que ele prega, é sombrio. A não ser, claro que um dos candidatos faça uma fala diferente da que ele fez com os companheiros blogueiros. O que eu duvido muito.

p.s. Ele ainda teve a cara de pau de reclamar dos estados em relação à Emenda 29. Só não mencionou que o governo Dilma e sua passe de apoio no congresso trabalharam para retirar da emenda a obrigação do governo federal de investir pelo menos 10% do PIB na saúde, mas mantiveram os percentuais dos estados (12%) e municípios (15%). E ainda que Dilma vetou a possibilidade de que revisões positivas no cálculo da variação do PIB significassem mais dinheiro pro orçamento da saúde.


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Aquela pipoquinha...

Entra no consultório uma senhora de 90 anos, numa cadeira de rodas, trazida por sua neta. Como de costume, quem fala é a neta, pois parece que há uma espécie de norma social que diz que idosos não podem falar por si. Pergunto o motivo da consulta, e ela responde que a avó tem diabetes e que a glicose estava alta esses dias, descobriram após "aquele exame de furadinha no dedo". Complementa que a avó também tem hipertensão, e que toma alguns medicamentos, trazidos naquela velha sacolinha de supermercado.

Me viro para a vovó, sorrio, e pergunto como ela está. Ela sorri de volta e diz: "Tô bem, doutor". Pergunto se ela come bem, se dorme bem, se tem sentido algum problema, e antes que ela responda a neta diz: "Doutor, ela adora comer pipoca. Diga a ela que não pode!".

***Se eu chegar aos noventa anos, amigos, vocês podem ter uma certeza: eu comerei o que eu quiser, na hora que quiser, do jeito que quiser (e tiver alcance pra pegar). Nem tentem impedir. ***

Enfim, digo a ela que pode comer a pipoquinha dela, só tem que ter cuidado pra não engasgar porque sabe como é, pipoca engasga. "Todo dia, doutor?", pergunta a neta, assustada. "Sim, todo dia. Desde que não substitua refeições. E tenta comer com pouco sal, ok?".

A vovó de repente dá um sorriso, agradece. A neta emenda: "Eita que tem gente que ficou feliz, né, vó?". E sorri também.

Fiz as velhas desprescrições de sempre (pantoprazol usando há 2 anos sem qualquer queixa relacionada ao estômago, tomando três medicamentos para a hipertensão e estava com pressão 12 x 8, tomando aquele velho remédio pra "baixar os triglicerídeos")...normalmente tirar os remédios é a parte que me deixa mais satisfeito durante uma consulta assim, porque é visível o alívio da pessoa quando é informada de que não precisa tomar tanta coisa. Mas nessa consulta, nem foi o melhor.

Bom mesmo foi liberar a pipoquinha pra vozinha de 90 anos. Vou pra casa com aquele sorriso dela na cabeça.

domingo, 23 de março de 2014

Declaração de intenções - Eleições 2014



Eu, cidadão brasileiro, com tendências esquerdistas-libertárias (pelo menos é o que diz o politicalcompass.org), declaro neste momento as minhas visões e intenções em relação aos envolvidos no processo eleitoral brasileiro que acontecerá neste ano de 2014:

1) O PT, que recebeu a maioria dos meus votos nos últimos 20 anos, passou de sonho para realidade dura. A despeito dos enormes avanços promovidos pela ampliação dos programas sociais, nunca vistos antes na história desse país, ou talvez por causa deles, o partido entrou em uma zona de conforto que o torna absolutamente inapto para assumir a postura agressiva que seria exigida para conduzir as reformas que este país necessita. Já houve um tempo em que o partido tinha capital político para enfrentar os que se beneficiam do status quo político/econômico/social neste país, mas em vez de fazê-lo, o partido parece ter oPTado por entrar no esquema. Conclusão: pretendo fazer o que considero um bem ao partido: fazer o que estiver ao meu alcance para, dentro das vias legais e democráticas, tirá-lo do poder, dando-o a oportunidade de sair da poltrona fofinha, largar o toddynho gelado e repensar sua trajetória, que hoje está tão distante do que os barbudos propunham pouco mais de três décadas atrás. Caso não consiga, pretendo fazer o que puder para incomodar, no bom sentido, o seu governo, questionando todas as besteiras que façam, reconhecendo o que ocasionalmente surgir de positivo.

2) O PSDB, a quem sempre fiz oposição, parece não ter aprendido a desempenhar o papel de segunda via. Mesmo após 12 anos vendo o PT no poder máximo, o partido não foi capaz de fazer o mínimo: uma agenda propositiva para o país. Talvez porque suas bases ideológicas tenham sido demolidas pelo cenário mundial neste período, ou pelo fato de não ter lideranças forjadas nas ruas, nos debates, mas sim nos gabinetes dos que sempre dominaram este país. Resultado: o partido parece murchar a cada eleição, o que também o torna inapto para mudar o país, pois para ter alguma governabilidade precisaria vender (sem alusão à privaria, tá?) até as cuecas e calcinhas para conseguir aprovar qualquer coisa naquele congresso imundo que temos. Conclusão: pretendo fazer o que considero um bem ao partido: fazer o que estiver ao meu alcance para, dentro das vias legais e democráticas, mantê-lo longe do poder, para que ele jamais imagine que esta trajetória ridícula dos últimos anos tenha qualquer ressonância em um segmento relevante de nossa sociedade. Torço (embora não acredite) que mais uma derrota acachapante balance suas lideranças e os direcione para um posicionamento e atitudes mais condizentes com uma oposição realmente útil ao país.

3) O PSB, postulante ao papel de terceira via, embora defenda uma nova política parece ter prática bem distinta. Pelo menos por estas bandas, onde estamos na dinastia do candidato do partido, a prática clientelista é cena comum, e não dá pra imaginar que seria diferente em nível federal. Os apoios que o candidato tem atraído demonstram isso melhor do que eu conseguiria explicar. Sobre o modelo de gestão que tem atraído tantas loas, posso testemunhar que é de fato muito interessante. O problema é que não adianta ter um modelo de gestão efetivo se as premissas estão erradas. E se você busca elaborar políticas públicas a partir de pesquisas de opinião, há uma chance boa de que você erre bastante, porque não basta captar idéias em um ponto no tempo, é preciso promover a circulação de idéias para que estas amadureçam. Gestão democrática não é ouvir as pessoas na calçada através de um instituto de pesquisa, mas sim criar espaços de discussão de propostas que sejam plurais e cujos produtos seja de fato considerados. Talvez este seja um dos grandes problemas do PSB. Conclusão: já que é pra escolher alguém neste processo, me parece que o PSB é a opção menos ruim, desde que me convença ao longo da campanha que não imporá qualquer retrocesso às políticas sociais do PT. Acho que o partido em si não será capaz de trazer algum benefício direto ao país porque pratica o mesmo fisiologismo que nos atrapalha tanto, mas talvez traga algum ganho indiretamente, sendo uma opção razoável enquanto a esquerda de verdade (porque de socialista o PSB não tem nada) se organiza novamente em torno de um projeto decente para voltar ao poder. Se eles não atrapalharem muito enquanto as idéias se arrumam, já tá de bom tamanho. Só não contem com meu voto no primeiro turno.

É isso. Quem quiser esticar essa prosa tomando uma cerva gelada pode me chamar que eu vou. Ou talvez ninguém queira me chamar pra uma cerva depois disso. Enfim. A seção de comentários tá logo abaixo.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Pelo fim dos municípios brasileiros

Dois textos colhidos em portais da internet agora pela manhã:

1) Municípios ficam sem dinheiro para financiamento por falta de documento (da Agência Brasil):
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-03/setenta-por-cento-dos-municipios-nao-podem-ter-recursos-federais-para

2) Escolas federais são a solução para a educação no Brasil (do Cristovam Buarque, no UOL):
http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/03/18/escolas-federais-sao-solucao-para-a-educacao-no-brasil.htm

O primeiro texto fala de uma lei de 2007 (sim, de SETE anos atrás) que estabelecia um prazo até o fim de 2013 para que os municípios brasileiros apresentassem um Plano Municipal de Saneamento Básico, sob pena de, a partir de 2014, não terem mais acesso a recursos federais para melhoria do saneamento caso não entregassem. Quantos entregaram? 30%. Isso, três em cada dez.
Aí os municípios se reuniram num evento (5a. Conferência Nacional das Cidades) a UM MÊS do fim do prazo (em novembro de 2013) e resolveram que o prazo dado anteriormente (DE SEIS ANOS) não foi suficiente e deveria ser ampliado, indo até 2015. Coincidentemente após as eleições.
Ainda não houve oficialização desta prorrogação porque é necessário que a presidente sancione. Alguém tem dúvida do que ela vai fazer em ano de eleição presidencial?

Vejam, ninguém exigia que os municípios fizessem saneamento em seis anos. Tudo que era exigido era UM PLANO para isso. E 70% dos municípios do país não tiveram competência para fazê-lo, alegando falta de dinheiro e de mão-de-obra capacitada.

O segundo texto não é uma notícia, é um projeto do Cristovam Buarque de federalização das escolas públicas. Segundo o mesmo, os municípios não são capazes de oferecer educação de qualidade em todas as suas escolas. E eu concordo com ele. Cristovam diz ainda que o custo anual de mais de 156 mil escolas federais (segundo ele, um número suficiente para cobrir o país) ficaria na casa de R$ 463 bilhões (cerca de R$ 3 milhões anuais por escola, um valor razoável), o que corresponderia a 6,4% do PIB. E lembra que o Plano Nacional de Educação prevê a destinação de 10% do PIB para a área, ou seja, o plano sairia mais barato do que o mau costume brasileiro de repassar dinheiro federal para que os municípios toquem as políticas públicas em educação.

Quando a gente olha para a saúde percebe o mesmo. As ações de saúde não acontecem direito porque cada município quer fazer do seu jeito, não há um seguimento objetivo da política nacional, e a corrupção impera junto com a incompetência técnica na maioria dos municípios. E por que isso acontece?

O governo federal se sustenta politicamente a partir do financiamento municipal. Aos que questionam o Bolsa Família (eu não), será que entendem que o centro de nossa forma de fazer gestão pública é um conjunto de "Bolsas Município"? O dinheiro vai para os municípios, que não conseguem fazer nada, e por isso pedem mais dinheiro ao governo federal, que manda mais dinheiro para se sustentar politicamente. Alguns estados já fazem o mesmo e adotam políticas de repasse de recursos aos municípios, que quase sempre são usadas como moeda de troca para manter os prefeitos sob sua influência.

Uma das inúmeras necessidades desse país é acabar com a grande maioria dos municípios, especialmente os pequenos currais eleitorais com 5 vereadores (com "Excelências" que possuem nomes do tipo "Mané da Venda", "Biu do Armazém" e "Neneca da Ambulância" - atenção: nomes fictícios, ok? Qualquer coincidência com pessoas reais trata-se de mera coincidência). As gestões municipais são, via de regra, parasitas sociais que só servem para perpetuar o poder políticos de grupos locais.

Pena que isso não vai acontecer nunca.

sábado, 1 de março de 2014

Uma consulta de "primeira vez"...check-ups.

(mulher, aproximadamente 55 anos, entra no meu consultório pela primeira vez)

- Bom dia!
- Bom dia, doutor!
- Como está a senhora? Tudo bem?
- Tudo bem...
- E aí? O que a senhora me traz hoje? Posso te ajudar em algo?
- Eu queria fazer um check-up.
- Ok. Quais os exames que a senhora quer fazer?
- Ah, sei lá...esses todos aí, doutor...sangue, fezes, urina...
- A senhora tá preocupada com algum problema, alguma doença especificamente?
- Não. Mas na minha idade a gente tem que saber como está, né?
- É. E como a senhora está? Se sente bem? Tem alguma queixa?
- Não.
- Certo...a senhora toma, ou já tomou algum medicamento para alguma coisa?
- Tomo sim, doutor! Eu tomo um remédio pro colesterol, e tomo uns remédios pra umas dores que eu sinto na perna de vez em quando.
- Ah...então a senhora sente dor na perna? Me fale mais sobre essa dor...
- Isso é coisa antiga, doutor. Já me acostumei. Tem mais de 10 anos que eu sinto essa dor.
- Certo. Mas como ela é?
- É uma dor nos joelhos, doutor. Já fui em um monte de médicos...já tomei tanto remédio que acabei com gastrite. Fiz até aquele exame da borracha uma vez! Aí um médico me passou uns remédios pro estômago...melhorei, mas de vez em quando ainda dói.
- Ok...então a senhora tem uma dor no joelho há mais de 10 anos, já tomou um monte de remédios e acabou com gastrite, que já tratou mas de vez em quando ainda incomoda, é isso?
- É! E eu tenho pressão alta também, viu?
- Olha! Mais uma coisa! E a senhora me falou no começo que não tinha nada! E toma algum remédio pra pressão?
- Tomo sim, doutor. Assim, às vezes eu esqueço, né? Mas quase todo dia eu tomo.
- Faz tempo que toma remédio pra pressão?
- Faz uns anos já...nunca mais eu fui no médico.
- Então a senhora tá sem acompanhamento médico pra essa pressão alta, né? Há quanto tempo?
- Vixe...sei não. Acho que uns dois, três anos.
- E tava comprando o remédio e tomando?
- Às vezes comprava, às vezes conseguia uma receita com alguém e pegava no posto...às vezes pegava remédio com uma vizinha minha...
- Certo...então já temos quatro coisas pra cuidar, né? A dor nos joelhos, a gastrite, a pressão alta e aquele remédio pra colesterol que a senhora falou. Tem mais alguma coisa?
- Uma vez meu açúcar no sangue deu alto, mas era pra eu ter feito uns exames aí e acabei não fazendo...e tem os exames de vista também que nunca mais eu fiz, meu óculos deve estar é vencido...
- Ok. Então vamos começar a cuidar disso tudo hoje, ok?
- Certo. E o senhor vai pedir meu check-up?
- Acho que a gente tem um monte de coisa pra cuidar agora, né? Vamos primeiro resolver essas coisas e depois a gente pensa em check-up?
- O senhor que sabe, doutor...
- Então vamos lá. Deixa eu ver esse joelho...

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E a consulta seguiu em frente...

Impressionante como a cultura de check-up já está tão arraigada nas pessoas que elas colocam a prevenção acima dos inúmeros problemas que já têm.

A quem serve essa indústria de check-ups?

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Casos emblemáticos pra pensar um pouco

Caso 1:

Um homem de 60 e poucos anos, diabético em uso de insulina sem qualquer regularidade, com a doença descontrolada, que tinha dormência e queimação nos pés há alguns meses. Foi atendido por uma pediatra (???) numa UBS que diagnosticou...erisipela. Prescreveu antibióticos, que claro, não funcionaram.

Diagnóstico: neuropatia diabética. Corrigi a insulina e mediquei a neuropatia.


Caso 2:

Uma mulher de quase 70 anos com dores no joelho há vários meses. Foi à sua ginecologista, que diagnosticou...osteoporose. E prescreveu carbonato de cálcio e vitamina D.

Diagnóstico: artrose bilateral de joelhos. Suspendi o carbonato de cálcio e a vitamina D, mediquei com antiinflamatórios e solicitei fisioterapia.


Caso 3:

Homem de 50 e poucos anos com diagnóstico de diabetes e hipertensão. Procura a USF com queixa de dores musculares. Medicamentos em uso: dois anti-hipertensivos, um medicamento para o diabetes e...sinvastatina. Nenhuma história de doença cardiovascular. Nem mesmo um examezinho de "rotina" com colesterol elevado.

Diagnóstico: dor muscular secundária à sinvastatina. Suspendi a mesma, aproveitei e suspendi o AAS também.

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Acho que eu gasto 30-40% do meu tempo em consultório corrigindo essas coisas. Tudo fruto de um sistema centrado em especialistas focais que usam representantes de laboratório como principal fonte de "atualização" clínica.

E o salário, ó...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Vacina contra o HPV: a discussão avança!!!

Gente, essa semana foi intensa. Como muitos de vocês devem saber, o texto anterior publicado aqui sobre a vacina contra o HPV foi reproduzido na coluna da jornalista Cláudia Collucci no site da Folha de São Paulo. A repercussão foi sensacional, e gerou uma resposta da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).

Para entender melhor algumas polêmicas a gente precisa abordar algumas questões mais técnicas relacionadas à produção de evidências na medicina atual. Talvez o texto fique meio chato, mas o momento exige uma discussão um pouco mais aprofundada.

Condições como o câncer de colo uterino demoram muitos anos para aparecer (às vezes até 20 anos entre a lesão inicial e o câncer propriamente dito). Agora vamos imaginar os custos de se fazer uma pesquisa que estude o impacto de qualquer medida no surgimento do câncer. Seriam altíssimos, né?

Para isso os pesquisadores às vezes recorrem à análise de coisas que não são o objeto do estudo propriamente dito, mas sim etapas prévias. No jargão técnico são os chamados “desfechos intermediários”, ou “desfechos substitutos”. Para ficar mais claro, exemplifico. Imagine que queremos estudar se a vacina contra o HPV funciona contra o câncer (ou seja, o câncer é o desfecho real), mas precisamos de resultados em um ou dois anos no máximo (você sabe, time is money). Então podemos fazer o seguinte: dividimos um grupo de mulheres em dois subgrupos, vacinamos todas as mulheres de um dos subgrupos, e às do outro subgrupo damos um placebo. Depois de alguns tempo nós podemos verificar se surgiram lesões prévias ao câncer, como as neoplasias intraepiteliais de baixo ou alto grau (NIC), e aí poderemos comparar se a vacinação pode ser associada à redução da presença das NIC.

A redução da presença de NIC, neste caso, é um desfecho substituto. Ou seja, não podemos fazer afirmações sobre a redução do câncer, mas podemos DEDUZIR que reduzindo as NIC reduziremos o câncer, não é? Podemos. O que nós seguramente NÃO podemos fazer é extrapolar os dados. Por exemplo, vamos dizer que no nosso estudo hipotético tivemos uma redução de 90% na presença do NIC. De forma alguma podemos dizer que a vacina reduz 90% dos cânceres de colo uterino porque a presença de NIC não significa câncer (na verdade, a imensa maioria das lesões induzidas pelo HPV, incluindo as NIC, desaparecem sem qualquer intervenção externa em até dois anos).

Parece óbvio, né? Mas é esse tipo de argumentação que muitos usam para apresentar os benefícios da vacina. Quando a SBIm fala que “enfatiza a importância da vacinação contra o HPV na prevenção não apenas do câncer de colo uterino”, ela se baseia em estudos que analisaram desfechos substitutos, não desfechos reais. Em português claro: não existem estudos robustos o suficiente para sustentar a afirmação da SBIm (e de mais um monte de gente).

Aí você me pergunta: “então você não acredita que a vacina possa ser capaz de prevenir o câncer?” Claro que acredito. Mas o “tamanho” desta prevenção ainda não me parece suficiente para justificar o investimento. Precisamos estudar mais a vacina para entendê-la melhor. E isso leva tempo. Mas pra que passar mais de 10 anos pesquisando, gastando milhões, se a indústria pode usar desfechos intermediários, diminuir os custos e ganhar muito dinheiro AGORA?

E aí vem o gancho pra chamar nosso amigo Papanicolau novamente. Durante a semana eu li o Secretário de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde, Jarbas Barbosa, com quem tive oportunidade de debater o assunto através do Facebook, dizendo que eu estava “contrapondo estratégias complementares (o Papanicolau e a vacinação)”. Aliás, palavras parecidas com as usadas pela SBIm (“trata-se de estratégias complementares, não excludentes”).
Acusação injusta. Eu concordo que a vacinação e o Papanicolau são complementares. Seria ótimo ter uma vacina de grande efetividade, e o Papanicolau servindo como uma oportunidade de pegar os casos que escapassem às vacinas. O problema é que este modelo tem uma chance real de não ser tão bom assim na prática: não temos boas coberturas do Papanicolau, e muito disso se deve à falta de interesse de muitas mulheres em fazer os exames. Pense comigo: se já há um interesse menor do que o ideal em fazer um exame que te proteja do câncer, o que acontecerá com este interesse se você tomar uma vacina que supostamente te dê proteção contra o câncer? Pra mim a lógica é que este interesse caia, imagino que as mulheres se sentirão mais protegidas. E eu nem digo que o que apenas acho deva ser a verdade, só acho que é um efeito interessante a ser estudado antes de se investir numa estratégia nova (e cara). Será que não caberia investir todo esse recurso e esse marketing no Papanicolau, criando uma cultura real de prevenção cuja efetividade está muitíssimo bem documentada, há muito tempo?
Aí podemos comentar de novo sobre a eficácia das vacinas. Precisamos primeiro, esclarecer a diferença entre eficácia e efetividade. Quando a SBIm coloca que a eficácia das vacinas já foi atestada, ela diz apenas que em condições controladas, a vacina teve resultados favoráveis. E o que são condições controladas? Imagine que para pesquisar sobre a vacina, os pesquisadores precisam minimizar os efeitos de qualquer coisa que possa atrapalhar a vacina. Um exemplo: as mulheres não precisam se lembrar de tomar a segunda dose; a própria equipe de pesquisa toma a inciativa de garantir a aplicação. Não existe, num estudo controlado, a possibilidade de faltar a vacina no dia da aplicação, porque a equipe de pesquisa garante o abastecimento. Um acompanhamento rigoroso é feito para evitar que as mulheres tomem medicamentos que possam interferir na resposta imunológica a ser desencadeada pela vacina. E por aí vai. Eficácia, então, seria o resultado no “mundo perfeito” para o pesquisador, tudo controladinho para facilitar ao máximo a observação desejada sem interferências. Mas no mundo real, as coisas podem funcionar diferente. O efeito do tratamento em condições “reais” é chamado efetividade. Ou seja, mesmo considerando que a vacina seja eficaz contra o câncer (e sabemos que ela não é, mas vamos deixar de lado os desfechos intermediários por enquanto...), ainda não sabemos se ela é tão efetiva assim. Ficou mais fácil de entender?
Mas vamos falar de eficácia então. Ao comentar a eficácia em pessoas que já iniciaram atividade sexual, a SBIm defende a vacinação destas pessoas alegando que existem benefícios. Deixa eu transcrever a informação do próprio fabricante ao comentar a ausência de resultados em pessoas com exposição prévia ao HPV (quem quiser conferir pode acessar aqui, página 18): “There is no expected efficacy since GARDASIL has not been demonstrated to provide protection against disease from vaccine HPV types to which a person has previously been exposed through sexual activity”. Em tradução livre: “Não era esperada eficácia uma vez que GARDASIL não demonstrou promover proteção contra doenças causadas por tipos do HPV aos quais a pessoa tenha sido previamente exposta através de atividade sexual”.
Em mulheres com idade entre 16 e 26 anos, a eficácia da vacina na redução de lesões intraepiteliais de alto grau relacionadas aos tipos de HPV existentes na vacina (uma das lesões precursoras do câncer) foi de 97,4% em mulheres sem exposição prévia ao vírus. Bom, né? Mas quando foi estudado o impacto no conjunto de lesões relacionadas a qualquer tipo de HPV a eficácia no mesmo grupo foi apenas 42,7%. (lembra a diferença entre “mundo perfeito” e “mundo real”? Olha ela aqui.). Quando foi observado o grupo inteiro (ou seja, expostas E não expostas ao vírus) a eficácia era de apenas 51,8% para lesões relacionadas aos tipos existentes na vacina, e de ridículos 18,4% para lesões causadas pelo HPV em geral. (Os dados estão no mesmo documento mencionado acima, páginas 18 e 20).
Agora, uma correção ao meu texto. Eu havia afirmado que “a eficácia havia sido verificada apenas em meninas sem vida sexual”. A SBIm apontou o equívoco, relatando que “os estudos que permitiram o licenciamento da vacina incluíram também mulheres com vida sexual ativa”. De fato, incluíram, mas como demonstrei acima, se há vida sexual e exposição ao HPV, a eficácia despenca. E ao checar a informação para poder corrigí-la, descobri o seguinte: na verdade, os estudos completos de eficácia só foram feitos em mulheres com MAIS de 16 anos. Sabem por que? Porque estes estudos envolvem coleta de amostras do colo uterino e da mucosa vaginal, o que não foi fácil de fazer nas meninas. Então nelas a eficácia foi medida apenas pelo tamanho da resposta imunológica induzida pela vacina, em amostras de sangue. Se eu reclamava de desfechos intermediários, o que dizer deste desfecho...”inicial”? Dizer que a vacina é eficaz em meninas menores de 16 anos parece mero exercício de criatividade.
E pra concluir, que eu já escrevi demais: a SBIm disse que meu texto anterior “não contribui para o esclarecimento adequado da população a respeito da doença e suas formas de prevenção, justamente no momento em que o programa Nacional de Imunização (PNI) se prepara para a disponibilização dessa importante vacina para as meninas brasileiras”. Sobre isso, só dá pra dizer que QUALQUER debate sobre o assunto contribui para o esclarecimento. Toda a minha admiração à Cláudia Collucci, que está promovendo esta discussão em sua coluna. Sigamos discutindo.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vacina contra o HPV: sim ou não?

O governo brasileiro optou por incluir a vacina contra o HPV no calendário nacional de imunizações, e já tem feito campanha para a sua utilização. Eu tenho feito vários comentários sobre o assunto nos últimos meses, e os mais recentes geraram muitas dúvidas entre muitos amigos. Assim, achei por bem resumir alguns pontos aqui no blog para facilitar a divulgação das informações.

Quando a gente pensa na possibilidade de tomar uma vacina para evitar uma doença, eu considero que devemos fazer duas perguntas:
1) Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção da doença? O que a vacina traz de novo?
2) A vacina realmente funciona?
3) Ela é segura?
4) Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?

Então vou tentar organizar uma resposta para estas questões.

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Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção do câncer de colo uterino?

Temos sim. E quase todo mundo conhece: é o famoso papanicolau, ou citopatológico cérvico-uterino (popularmente conhecido como "preventivo de câncer de colo").

O papanicolau consiste na obtenção de amostras de tecido do colo uterino para que sejam analisadas em microscópio, verificando se existem células alteradas na amostra. Entre estas alterações está o câncer. O exame é de fácil realização, muito barato (ao contrário da vacina), e o melhor: bastante confiável. É muito raro uma mulher apresentar câncer se realizar o papanicolau na periodicidade recomendada (anualmente, e após dois exames normais com intervalo de um ano, o exame passa a ser recomendado a cada três anos). Sabem por que? Porque o câncer de colo de útero é uma doença de evolução muito lenta (normalmente em torno de 10 anos), e o papanicolau permite que detectemos formas precursoras do câncer (ou seja, alterações na células que AINDA não são cânceres).

Ou seja, o papanicolau pode sim evitar que as mulheres cheguem a ter um câncer de colo uterino, pois permite o tratamento prévio de lesões que antecedem o câncer.

Aí você me pergunta: e todas as mulheres do país têm acesso ao exame? A resposta também é boa: têm sim. O exame é oferecido pelo SUS, e a coleta pode ser realizada em postos de saúde por enfermeiros, que recebem este treinamento durante a sua formação universitária. Quando um exame tem resultado anormal, o próprio enfermeiro ou um médico podem encaminhar a mulher a um serviço especializado onde seu problema será resolvido.

O papanicolau está recomendado para as mulheres de 25 a 64 anos, e deve ser realizado inclusive em mulheres que recebem a vacina, pois ela não protege contra todos os tipos de HPV (mais detalhes adiante).

Então, se temos um exame confiável, barato e disponível para todas as mulheres do país, o que nos faria mudar de estratégia, partindo para usar uma vacina que NÃO EXCLUI a necessidade de realizar o mesmo exame ao longo da vida? O que esta vacina traz de novo?

A vacina realmente funciona?

Depende. Para que? Vamos lá.

O HPV é um vírus transmitido através do contato sexual. Por isso, alguns pesquisadores tiveram uma idéia: se conseguíssemos evitar a infecção pelo HPV não teríamos mais câncer de colo uterino. Faz sentido, certo? Mas esta hipótese tem alguns probleminhas.

O primeiro problema desta hipótese está em como evitar a infecção. A transmissão do HPV é sexual, e basta o contato íntimo mesmo sem penetração para que a passagem do vírus aconteça. Então a melhor maneira de evitar a transmissão seria a abstinência sexual (tem até um estudo clássico neste tema que descobriu que freiras não têm câncer de colo uterino). Como a abstinência não costuma ser uma prática muito popular :) então a gente tem que pensar em outra coisa.

Considerando que o vírus vai acabar circulando mesmo por aí, a solução mais óbvia seria vacinar as pessoas contra ele. O problema é que o HPV possui mais de 100 subtipos, e as vacinas ainda não conseguem cobrir todos eles, embora cubram os principais. Isso significa que mesmo que a vacina proteja alguém contra os subtipos que ela cobre, ela ainda permite que outros subtipos provoquem o câncer. Ou seja, ela não dá 100% de certeza de que as mulheres não terão câncer de colo uterino. A propaganda não explica isso, né? Mas é por este motivo que a bula da vacina avisa que a vacinação não exclui a necessidade de que a mulher continue realizando o papanicolau (como eu tinha dito ali acima).

E tem mais: nem toda infecção pelo HPV provoca câncer. Na verdade, a minoria delas faz isso. Então mais importante do que se preocupar com a infecção, parece mais importante acompanharmos se a infecção evolui para lesões perigosas ou não, né? Ou seja: dá-lhe papanicolau nessa disputa, ganhando de lavada da vacina.

Outra coisa: a eficácia da vacina foi verificada apenas em meninas sem vida sexual. E o HPV é tão frequente na população que podemos dizer que se alguém já iniciou sua vida sexual, a chance de ter sido contaminado pelo vírus é de quase 100%. Ou seja, se a pessoa não é mais virgem, tomar a vacina não vai fazer nenhum efeito, porque a resposta que ela provoca no organismo não elimina os vírus que já estejam lá, apenas evitaria o contágio. No entanto, muitos médicos têm recomendado a vacina nestas pessoas, o que é contrário até às recomendações do próprio fabricante.

Nem vou discutir os efeitos da vacina na mortalidade, porque nem deu tempo ainda de estudarem isso direito. Como eu falei, o câncer de colo uterino é de evolução muito lenta, e acaba só sendo perigoso para mulheres que não fazem o papanicolau na periodicidade recomendada.

Mas aí algumas pessoas argumentam: "Poxa, ok, mas se ela evitar a infecção já faz algum benefício, né? Afinal de contas, mal não vai fazer."

Será? Vamos adiante.

Ela é segura?

Há alguma controvérsia. Apontando a segurança da vacina nós temos os estudos feitos pelos fabricantes e as recomendações do CDC (órgão do governo dos EUA). No entanto temos alguns casos de doenças mais graves, ao ponto de existirem processos correndo na França movidos por vítimas da vacina, e casos semelhantes levaram o governo do Japão a não mais recomendar a vacina. Doenças como síndrome de Guillain-Barré, falência ovariana, uveítes, além de sintomas como convulsões e desmaios têm sido associados à vacina, mas esta relação ainda não foi demonstrada em grandes estudos.

Então vamos supor que isso aconteça em uma menina a cada 30 mil que sejam vacinadas (a proporção é baseada nas notificações de efeitos adversos do CDC, chamada de VAERS, e está disponível na internet). Será que compensa o risco, mesmo que seja baixo, de ter uma doença grave, se a vacinação não é melhor do que a estratégia que temos hoje para controlar o câncer de colo uterino (o papanicolau)?

Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?

Pra mim não compensa. Só de imaginar uma filha minha com paralisias causadas por uma vacina dessas eu descarto a idéia rapidinho. Pretendo promover uma educação sexual boa para minhas filhas, para que saibam que precisam se proteger usando preservativo (até porque outros problemas como gravidez indesejada, HIV, hepatite B, entre outros, estão batendo na porta o tempo todo). E acima de tudo, demonstrar sempre a importância de fazer o papanicolau na periodicidade recomendada. Se conseguir, duvido que elas sofram deste mal. E sem essa vacina cara e suspeita. Minhas pacientes e suas famílias receberão a mesma recomendação.

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Espero que tenha ajudado. Se gostou divulgue. E se eu puder esclarecer mais alguma coisa, comenta aí embaixo! Pode corrigir ou acrescentar algo também!