terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ah, a sabedoria dos pacientes esclarecidos...

Durante uma das consultas de hoje, um senhor de 74 anos estava sendo atendido por mim pela primeira vez, contando que tinha a próstata aumentada e por isso estava tomando um medicamento:

- Doutor, o urologista queria me operar, mas eu não deixei não!
- E como foi isso?
- Ele falou que eu tinha a próstata grande e que ia me operar.
- Mas o que o senhor sentia?
- Eu tinha dificuldade para urinar...às vezes ficava presa, às vezes eu fazia na roupa porque não dava tempo.
- Mas o senhor não falou que tomava um remédio?
- Tomava sim! Ainda tomo!
- E ele queria operar por isso? O medicamento não ajudou o senhor?
- Ajudou sim. Depois de uns dois meses tomando eu não sentia mais nada.
- E por que ele queria operar o senhor?
- Então doutor, era isso que eu perguntava a ele! E ele só fazia dizer: "vai ser por vídeo, é rapidinho, o senhor fique tranquilo...". Só que eu sou macaco velho com esse negócio de operar sem necessidade, e quando ele não respondia o que eu perguntava eu saí logo dali.
- Como assim "macaco velho"?
- Ah, doutor, essa é outra história...eu operei o braço faz muitos anos, aquí, ó (mostrando uma cicatriz de uns 10 cm indo do meio do braço esquerdo até depois do cotovelo). Eu tinha uma dormência nesses três dedos da mão. Aí fui numa médica que fez um exame que botava uns fios no braço, e me mandou pra outro médico no hospital XXX. Lá ele me examinou na frente de um monte de meninos, tudo novinho, mais novinho que o senhor. Ele apertava meu braço e ficava dizendo (fazendo uma cara de esnobe): "Estão vendo? Hanseníase!"
- O senhor tinha hanseníase?
- Eu mesmo não, doutor! Mas enfim, ele falou lá, né? Professor, cheio de alunos ali, eu só pensava: "deve estar certo".
- Mas e a cirurgia?
- Eu tinha três dedos dormentes. Agora tenho dois, e essa cicatriz. Resolveu nada. Mas já acostumei.
- E ele mandou o senhor checar essa história de hanseníase?
- Nada! Eu é que fui, porque já tinha visto umas coisas no posto e sabia que era grave. Aí fui numa especialista em hanseníase que me disseram que tinha numa clínica da prefeitura. Ela ficou braba, viu? Disse que eu não tinha hanseníase coisa nenhuma, e fez até um bilhete bem desaforado pro médico. Eu tentei entregar a ele, mas ficou difícil marcar consulta.
- Ok. Então ficou por isso mesmo.
- É. Já tava operado mesmo, deixei quieto. Mas lembro o nome dele até hoje, viu? É XXXXXXXX.
- Nem me conte. Vamos cuidar do agora. Então o senhor escapou da cirurgia da próstata. Tá conseguindo sobreviver direitinho aos médicos, né?
- (Gargalhadas) É, doutor. É só não se afobar que a gente não se complica.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Um projeto distorcido

Publicado no Jornal do Commercio de hoje, 16/09/2014


Opinião JC - 16/9/2014
Um projeto distorcido
Rodrigo Lima

O prefeito do Recife, Geraldo Julio, iniciou neste ano a implantação de unidades de saúde chamadas Upinhas, a partir de promessa de campanha eleitoral com objetivo claro: pegar carona na boa receptividade que tiveram as Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) implantadas por Eduardo Campos, durante sua passagem pela administração do governo do Estado em pouco mais de sete anos, e mostrar à população recifense alinhamento de projetos com seu padrinho político.
As Upinhas aqui instaladas consistem em serviços de atendimento ambulatorial Unidades de Saúde da Família (USF) com estrutura diferenciada que os habilita a atender pequenas urgências, visando dar continuidade ao projeto estadual: se as UPAs se propunham a diminuir a demanda por atendimento de urgência nos grandes hospitais do estado, as Upinhas traziam a promessa de diminuir a demanda que se direcionou às UPAs.
Passados seis meses de inauguração da primeira Upinha, localizada no Morro da Conceição, será que a promessa está sendo cumprida?
Nas Upinhas acontece hoje a disputa mais importante para a saúde da população recifense nos próximos anos: Estratégia Saúde da Família ou Pronto- atendimento? Qual a melhor opção? Enquanto as três equipes de saúde da família, compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem e saúde bucal e agentes comunitários de saúde, se dedicam a oferecer atendimento personalizado, focado nas pessoas, considerando as necessidades da população, a gestão municipal trabalha para induzir estes profissionais a organizarem suas agendas priorizando queixas agudas e urgentes.
Ora, quais são as doenças que mais ameaçam de doença, incapacidade e morte a população brasileira? É sabido que as mais importantes são as condições crônicas como as doenças cardiovasculares e o câncer.
Quem estuda saúde pública sabe muito bem que o que superlota as urgências é exatamente a falta de cuidados preventivos e assistenciais em tempo hábil, antes que estas doenças se instalem e produzam complicações.
Precisamos evitar ao máximo a necessidade do pronto-atendimento, e isso não se faz com novos serviços com a mesma natureza, mas com serviços que equilibrem ações preventivas e curativas, cuidando das pessoas ao longo do tempo e de forma integral, o que acontece nas boas USF.
Em oposição a estas evidências, a gestão municipal insiste na nomenclatura Upinha para as USF do município, confundindo os usuários e descaracterizando o serviço mais bem avaliado entre todos os oferecidos pelo SUS.
Afinal, o que é "urgente" para a população recifense? Precisamos que nossos gestores municipais respondam rapidamente a esta pergunta, antes que as Upinhas distorçam ainda mais um sistema de saúde que poderia fazer muito mais pela saúde das pessoas se não fosse vítima de tantas invencionices desenvolvidas pelos gestores da vez.

Rodrigo Lima é médico e presidente da Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade (APEMFC)