domingo, 26 de outubro de 2014

Um diálogo com o coração antes da votação

É a minha décima eleição. Pela primeira vez, não votei pela manhã. Votar sempre foi a primeira coisa a fazer num domingo de eleições, mas faz um tempão que estou aqui no computador procrastinando a ida à seção eleitoral. Motivo: absoluta falta de vontade de ir até a urna eletrônica.

Eleição pra mim sempre foi uma coisa massa. E sempre culminou com o dia da votação: acordar, tomar um banho, ir andando até o local de votação olhando para as pessoas, ouvindo as conversas, observando, ansioso para o(a) meu(a) candidato(a) sair vencedor. Em alguns momentos, até sair andando pela rua encontrando amigos, companheiros de batalha, trocando idéias.

Hoje eu vou porque é o jeito. Pensei em não ir e pagar a multa, mas não. Preciso viver o luto das eleições pra mim.

Até esse momento pensei em não anular o voto. De última hora, ouvir o coração (com o perdão da metáfora cafona) e escolher alguém.

Pois estou ouvindo o meu coração. E ele chora. E eu preciso respeitá-lo. Se a cabeça não fechou a questão ainda, vou deixar o coração escolher. E ele, mais do que qualquer coisa, não quer nenhum dos dois. Encolhido, envergonhado, ele me confidencia isso. Mas quando pergunto "E depois da eleição, o que faremos?", ele infla, levanta sua cabeça imaginária e diz: "o de sempre, velho. Continuamos na luta".

É isso. Bom voto pra vocês.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Um outubro rosa de verdade

- Bom dia, dona Maria.
- Bom dia, doutor. Olhe, eu vim aqui pra o senhor me dar um encaminhamento para a ginecologista.
- Ok. A senhora está sentindo alguma coisa?
- Não, estou ótima, é só pros exames de rotina.
- Certo. Deixa eu ver aqui...a senhora tem 70 anos, né?
- Isso, doutor.
- E a senhora faz esses exames de rotina sempre?
- Faço, desde que eu era jovem. Sempre me cuidei muito. Todo ano eu faço o preventivo e a mamografia.
- E já deu alguma alteração nesses exames?
- Não, doutor. Nunca. Também...eu faço por onde. Caminho todos os dias, como muita fruta, muita verdura, gosto de linhaça, de aveia...não como carne vermelha, viu?
- E a senhora tem algum outro problema de saúde, que não seja ginecológico?
- Não, doutor. Nada. Nem pressão alta, nem diabetes, nunca tive nada disso.
- Certo. E se eu disser que a senhora não precisa mais desses exames de rotina?
- Preciso não?
- Não. Se a senhora fez exames com a ginecologista regularmente esse tempo todo e não encontrou nada, pode ficar tranquila que provavelmente não vai ter problemas com essas doenças. O preventivo a gente para de fazer aos 64 anos. E os exames da mama, aos 69. Então a senhora não precisa mais.
- E por que os médicos dizem que a gente tem que fazer os exames mesmo asism?
- Provavelmente pra gerar consultas e exames e ajudar eles a pagar as contas do mês.
- É mesmo, né?
- Dona Maria, com a saúde que a senhora tem, posso lhe dar um conselho?
- Pode.
- Passe longe da gente. Venha só quando realmente necessário. Do jeito que médico gosta de procurar coisa, daqui a pouco arrumam algum problema pra senhora. Se a senhora precisar de algo, pode vir, mas relaxe com esse negócio de exames de rotina.
- (Ri.) Obrigado, doutor. Gostei da sinceridade. O senhor tá certo. Se eu precisar eu venho, mas se não...vou curtir a vida.
- Isso, dona Maria. Vá curtir a vida.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O "Outubro Rosa" está acabando...e não deixa saudades.

Outubro. Estudantes mal podem esperar pelo fim do ano letivo, trabalhadores anseiam por seus 13o. salários, gestores públicos correm pra fechar as contas, economistas se preocupam em exercícios de futurologia pra adivinhar o que vai acontecer com o PIB no ano que vem, e por aí vai, nem vou mencionar as eleições.

Como se a sociedade não tivesse preocupações e anseios suficientes, inventaram mais uma: o famigerado "Outubro Rosa" e sua sanha de colocar todas as mulheres naquela máquina que aperta as mamas.

Aqui em Recife, a paranóia segue seu curso anual. O prédio da prefeitura ganhou iluminação cor-de-rosa, assim como a antena da TV Globo. Homens e mulheres usam lacinhos da mesma cor pendurados nas camisas, ou mesmo na cabeça, e se forem da área da saúde penduram no jaleco. Jornais estampam o tema em suas capas, e amigos enchem nossas linhas do tempo do Facebook com lembretes da campanha.

É preciso ser dito que a idéia inicial do "Outubro Rosa" (surgida nos EUA, há quase 25 anos) é boa: mobilizar a sociedade em torno da prevenção e tratamento do câncer de mama, doença que mata milhares de mulheres todo ano, além de estar associada a cirurgias mutiladoras e tratamentos bastante sofridos. No entanto, como muitas das idéias que começam bem intencionadas, o "Outubro Rosa" foi completamente cooptado pela indústria; nesse caso, a indústria da mamografia.

Vale a pena olhar um pouco as evidências mais recentes sobre a mamografia enquanto método de rastreamento do câncer de mama:

Um estudo feito com quase 90 mil mulheres canadenses comparou a mortalidade por câncer de mama em mulheres que submeteram à mamografias anuais durante 5 anos com mulheres que não fizeram estes exames. Todas tiveram suas mamas examinadas por um profissional de saúde. Os pesquisadores concluíram que "a mamografia anual em mulheres com idade entre 40-59 anos não reduziu a mortalidade por câncer de mama mais do que o exame físico ou os cuidados habituais quando o tratamento para o câncer está disponível livremente". E mais: verificaram também que "22% dos cânceres identificados por mamografias eram sobrediagnosticados*, representando um caso para cada 424 mulheres que fizeram a mamografia no estudo".

(*nota: para saber mais sobre sobrediagnóstico, clique aqui)

Outro estudo, este feito com mulheres estadunidenses, concluiu após analisar várias evidências que "o rastreamento sistemático por mamografia pode evitar uma morte por câncer de mama para cada 1000 mulheres rastreadas, embora não exista evidência de que a mortalidade em geral seja afetada". Ou seja, a redução na mortalidade foi muito pequena, e as mortes por câncer de mama evitadas são substituídas por outras causas no mesmo período. Sobre os malefícios do rastreamento por mamografia, consideram que "para cada morte por câncer de mama evitada no período de 10 anos de rastreamento anual começando aos 50 anos de idade, de 490 a 670 mulheres podem ter mamografias falso-positivas, de 70 a 100 farão uma biópsia desnecessária, e de 3 a 14 terão um diagnóstico de câncer que jamais traria manifestações clínicas (sobrediagnóstico)".

Embora a mamografia não tenha resultados tão positivos, não é esta a percepção das mulheres. Um estudo europeu feito com 4000 mulheres apontou que 68% delas acreditam que a mamografia diminui o risco de desenvolver um câncer de mama e 62% acreditam que diminui em pelo menos metade o risco de morrer por este tipo de câncer, concluindo que "uma alta proporção de mulheres superestima os benefícios que podem ser esperados do rastreamento por mamografia", e que "este achado levanta dúvidas sobre o consentimento informado dentro dos programas de rastreamento de câncer de mama".

Membros do Conselho Médico da Suíça, ao analisar evidências como essas, afirmaram que "é fácil promover o rastreamento por mamografias quando a maioria das mulheres acreditam que ele previne ou reduz o risco de surgimento do câncer de mama e salva muitas vidas através da detecção precoce de tumores agressivos. (...) infelizmente, estas crenças não são válidas, e nós acreditamos que as mulheres precisam ser avisadas disso".

Se as campanhas que estimulam a realização massiva de mamografias não trazem todo o benefício que as mulheres acreditam que trariam, então não servem aos interesses destas mulheres. Então servem aos interesses de quem? Provavelmente, aos que lucram com isso. Diretamente (aos que vendem o exame) ou indiretamente (por exemplo, gestores públicos que melhoram a sua imagem ao promover as campanhas).

Pelo menos uma vantagem desse ano eleitoral: o bafafá em torno das eleições está tão grande que ofuscou os apertadores de mamas...